Nos dias de hoje, é certo que a heroína dos dois mundos seria rechaçada por muitos que a rendem homenagens.
Nos tempos do segundo reinado, o Brasil era um caldeirão prestes a transbordar. Embora o francês Charles Ribeyrolles, ao passar pelas terras verde-amarelas, tenha documentado que “há anos não [havia] mais processos políticos, nem prisioneiros de Estado, nem processos de imprensa…”, não é certo dizer que foi um período propício para a liberdade.
A Guerra do Paraguai, em 1864, dividiu as páginas da história militar brasileira e a questão Christie levantou os ânimos do país ao peitar em ambiente internacional a poderosa Inglaterra – mas não eram apenas as questões externas que faziam borbulhar o Império.
De norte a sul já havia quem questionasse o despotismo esclarecido do sonolento Imperador e espalhava dúvidas entre a população. Dificilmente o Brasil terá uma imprensa tão liberal como naqueles anos: todos as semanas, os jornaleiros entregavam periódicos (alguns redigidos a mão) com palavras de liberdade e criticando abertamente o imperador.
Havia ainda dentro das fronteiras do Império movimentos que davam um passo além em seus princípios. Eles não queriam apenas a liberdade política, mas liberdade de poder redesenhar o mapa do país (e, se possível, criar o próprio). Os movimentos separatistas mais engajados do período eram a Insurreição Praieira, de Pernambuco, e a Revolução Farroupilha, no extremo sul.
Dessa amálgama fervilhante surge uma das maiores personagens de nossa história. Em uma história dominada pelo protagonismo masculino, Anita Garibaldi, de cabelos negros e olhos profundos, escreveria junto do contraditório e interessantíssimo, Giuseppe Garibaldi, seus nomes nas páginas do Brasil, lutando até os últimos dias por aquilo que acreditava e a libertação dos povos.
A vida de Anita Garibaldi daria um filme de aventura. Muito se especula sobre a vida de Anita, com uma biografia permeada de lendas e distorções, mas, na verdade, pouco se sabe. Nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro na vila de Laguna (SC), a jovem adotava hábitos que causavam burburinhos nos círculos sociais. Ela sabia montar a cavalo, casou-se aos 14 anos com um sapateiro, mas escolheu não ter filhos, e tinha um interesse extenso pela política nacional – um tempo de ouro para se interessar por esse assunto!
O segundo reinado até hoje deixa historiadores insones tentando descrever sua complexidade. Num remoto mês de junho de 1839, a vida de Anita iria se misturar para sempre com a história. “Entramos, e a primeira pessoa que se aproximou era aquela cujo aspecto me tinha feito desembarcar. Era Anita! A mãe de meus filhos! A companhia de minha vida, na boa e na má fortuna”, documentou o revolucionário, Giuseppe Garibaldi, sobre a quele dia. Um amor à primeira vista! Ele estava na cidade portuária para fundar com Davi Canabarro uma república independente e liberal nos trópicos: República Catharinense Livre e Independente, mais conhecida como República Juliana.
A relação do casal iria se aquentar, até o fatídico dia de 20 de outubro do mesmo ano, Ana entregaria sua vida à causa. Do dia para a noite ela trocaria os aventais pela revolução. Na garupa de Giuseppe, ela abandonava sua pacata vila para se juntar aos farrapos. Ela sentia pela primeira vez o sabor agridoce da Liberdade.
O casal passaria o resto dos dias participando de guerrilhas pela independência de países na América do Sul e Europa como numa produção hollywoodiana. Ela com os cabelos ao vento como uma amazona, ele com barba hirsuta e camisa vermelha de revolucionário. O amor deles iria crescer com as batalhas e os perigos que sobrevivessem.
Eles iriam defender a balas muitas ideias modernas (e perigosas) para o período. A igualdade de homens e mulheres, entre pessoas de peles diferentes, a independência e as liberdades políticas. Seria errado dizer que os dois são exemplos de liberais para o padrão moderno, mas em muitos pontos, interessantes à mentalidade hodierna. Muito tempo depois da morte de Anita, já no fim da vida, Garibaldi volveria sua revolução à esquerda pacifista, chegando a se declarar socialista (mas seria logo desmentido por Marx). Empurrando-os em uma conceituação moderna, os dois seriam considerados liberais-nacionalistas.
Anita Garibaldi iria morrer precocemente, aos 29 anos, por complicações de uma gravidez à costa da Itália. Diferente do revolucionário, Anita conservaria uma imagem jovem nos retratos. A história, entretanto, não a pintaria tão bem no início. Na Itália, onde o corpo descansa até hoje, sua imagem foi enxugada pelos fascistas (até se tornar um símbolo) e seria condenada pela igreja (que se pudesse, a condenaria à fogueira). “É evidente que a figura de Anita estava completamente ausente nas publicações católicas, onde era impossível enfraquecer a liderança ideológica da esposa de Garibaldi”, explica Silvia Cavicchioli em Storia e mito di Anita Garibaldi (pág. 175) “e qualquer abordagem à brasileira era imprópria”.
Apesar de todas as lacunas de sua biografia e falta de conhecimento sobre seu pensamento político, Anita é uma figura ímpar na história, que merece amplos debates e estudos. Em sua última carta antes de morrer, é certo que sua vida cinematográfica tenha passado diante os olhos. À irmã, provavelmente ditando as palavras da confissão epistolar, ela teria dito não estar arrependida. “Agora estou aqui, no fim do caminho! O que posso lhe dizer? Que faria tudo de novo? Acho mesmo que sim!”, e deixou seu legado para a história.
Para saber mais sobre a vida da guerrilheira, recomenda-se visitar a exposição virtual 200 Anos de Anita Garibaldi
Não são poucos os monumentos à Anita Garibaldi – fora as inúmeras escolas, avenidas e praças com seu nome, ainda existem duas cidades em sua homenagem: Anita Garibaldi e Anitápolis.
Embora muitos não façam ideia de sua história, não seria exagero dizer que ela é uma das mais importantes personagens do Brasil.
De forma contraditória, não se deixa de notar que muitos políticos e personalidades que enchem a boca para homenageá-la seriam os mesmos a mandar para as fogueiras da inquisição a Joana d’Arc brasileira.
Como muito se sabe, mulheres que defendem posições liberais recebem perseguições constantes de pessoas do “lado certo da política”, o famigerado machismo do bem (como no vídeo do Porta dos Fundos escarneando políticas do partido Novo). Além disso, certamente ela seria acusada de ser uma terrorista anticonstitucional: apenas defender uma hipotética secessão nacional é considerado crime e atentado contra a segurança nacional (artigo 11 da Lei 7.170/1983, segundo TRE-SC).
A imagem da heroína foi redesenhada, retocada e reinterpretada ao longo dos anos, ao ponto que deve se separar o mito Anita Garibaldi de Ana Maria de Jesus Ribeiro. Como acontece com muitas figuras históricas, ela foi transformada em símbolos que não sabemos ao certo se gostaria de ser: “a feminista antes do feminismo”; “guerrilheira da liberdade” e “heroína do Fascismo garibaldino”.
Vale lembrar que Anita Garibaldi não se encaixaria em nosso conceito atual de “liberal” (ou neoliberal, como pregam prolixamente alguns intelectuais), o que seria na verdade um anacronismo trágico. Mas não nos esqueçamos: existe liberalismo fora do cânone liberal! Isso tudo, na verdade, pouco importa – em seus 200 anos, Anita Garibaldi deve ser festejada e estudada por nós como um exemplo da defesa apaixonada e sincera pela liberdade.
História do Liberalismo Brasileiro – Antônio Paim
Storia e mito di Anita Garibaldi – Silvia Cavicchioli
Anita Garibaldi – Heloisa Prieto
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/79307/153071.pdf;jsessionid=378B3ECF551DFB0AA9B4376B5C0A4228?sequence=1 Acesso em: 26/08/2021