Afinal, cacetetes e apenas eles são atores políticos possíveis em cenário de crise, de caos, de desentendimento generalizado. Se você não compreende, não se preocupe: há Quem compreenda por você.
Nada mais errado do que dizer, ainda hoje, que a esquerda marxista (ou ao menos aquela que assim se entende) nada aprendeu com a experiência soviética do século XX. Aprendeu, e muito, com seus revolucionários e suas teorias revolucionárias: se em Marx a ruptura com o capitalismo viria de um corpo social autônomo, do colapso inevitável de um sistema intrinsecamente recheado de contradições tendencialmente crescentes, em Lenin o trabalhador, o proletário, vira coadjuvante de um novo e mais importante jogador. Para o pobre explorado que pouco percebe de sua vida e de sua exploração surge a iluminada vanguarda revolucionária – Quem perceba por você. O problema do agente ausente da teoria marxista (a classe proletária) – um fenômeno plenamente concebido pela ciência política em Olson e qualquer outro estudioso da ação coletiva – “se resolve” com o problema das oligarquias de ferro de Michels. Não é pouco caso que trotskismo seja termo chulo em rodas de formação de coletivos à esquerda (goo.gl/VJv0Rk).
Que esse pensamento seja pai de toda sorte de autoritarismos não é novidade para ninguém, menos, é claro, para os iluminados (em suas cabeças cabe um esclarecimento maquiavélico inalcançável por nós, meros mortais). As evidências estão em todos os lugares: na militância aguerrida dos justiceiros sociais, arquitetos inconscientes da nova culpa católica levada a cabo pelo linchamento em praça pública (a “cultura da rachação”); no resultado das eleições municipais deste ano que escancarou o paternalismo de elites intelectuais que dirigem suas chantagens de garis do Rio de Janeiro (goo.gl/5qi0qo) ao “povo brasileiro” em si (goo.gl/KrV1yi – este talvez o exemplo recente mais prático da sugestão Brechtiana de “dissolver o povo e eleger outro”); e, finalmente, nas ocupações estudantis em universidades e escolas públicas ao redor do Brasil.
Que não seja claro ainda para todos que a privatização de espaços públicos de ensino por grupos tocando pautas político-partidárias é, sem tirar nem por, imposição física violenta e coercitiva, é um sinal perturbante de nossos tempos. Meias palavras, rodeios, fins que justificam meios. Não há floreio retórico que justifique o injustificável: a liberdade de expressão e manifestação política devem sim ser plenamente asseguradas a todos, mas estas só existem de fato se cabe espaço na disputa democrática à discordância e à pluralidade. Proibir estudantes que querem utilizar dos espaços de sala de aula para continuar seus estudos em um contexto de greve estudantil é obrigar uma classe inteira a se subjulgar às pautas do grupo grevista. Nossa constituição não comporta isso e, muito mais importante do que nossa jurisdição, este tipo de imposição vai de encontro direto aos verdadeiros valores de liberdade que qualquer Estado de direito deve pregar. A suposta “eficiência” deste tipo de atuação política em nada torna-a ética e justa: será que ainda não compreendemos que nenhum indivíduo é um meio para você ou seu grupo conquistar seu fim desejado? É triste, na realidade, precisar discorrer sobre o óbvio.
Ao redor do Brasil cada vez mais se escuta sobre confrontos físicos entre estudantes dentro das Universidades. É um cenário trágico este onde a academia se transforma em arena para violência, mas é impossível não notar que esta é a consequência lógica das ações tomadas por ocupantes. Utilizar da agressão como reação a estas é, obviamente, injustificável, mas é importante lembrar que estes iniciaram a agressão e apenas a cegueira nega este fato: trancar um prédio, utilizar do corpo como barreira corporal, da força como modo de impedir o transitar de pessoas é violência! É a força física a arma daqueles que ocupam!
Por trás das formas autoritárias das manifestações estudantis de hoje está um corpo argumentativo que também é importante de se analisar. Os participacionistas, auto-proclamados defensores de dispositivos de democracia direta, mostram sua cara ao defender cegamente a participação de seus pares e unicamente deles. A ideia de uma votação com maior participação, como o voto online ou por urnas, é prontamente execrada – quem não vai nos espaços deliberativos não vai por preguiça, descaso com a situação do Brasil, não por possuir compromissos, aulas, trabalho, famílias para cuidar etc. O teatro de democracia que delibera em uma assembleia de um curso com participação, via de regra, menor que 10% do total de alunos a ocupação de um prédio composto por outros três cursos deveria ser óbvio o suficiente até mesmo para eles, mas não é. Na Universidade Federal de Santa Maria, esta quinta-feira, não chegava a 20% (em relação ao número de alunos da UFSM) o total de votantes em uma assembleia geral que deliberou a invasão aos prédios e a proibição das aulas – como se uma assembleia possui-se legitimidade democrática de decidir sobre a privação de direitos de outrem! Quem dirá uma esvaziada a este nível! E quem dirá uma incapaz de quantificar quantos dos votos eram, de fato, de estudantes da UFSM (a assembleia era aberta para todos e o voto feito levantando a mão)!
Além disso, tendo plena ciência daquilo que é evidente para todos, a campanha de difamação da patrulha ideológica para calar e desvalidar a posição da maioria contrária às ocupações soma-se como modus operandi. Apropriando-se de algum tipo de adaptação esdrúxula da luta de classes marxiana, o movimento de ocupações entende que aqueles que estão contra seu autoritarismo apenas podem ser os burgueses, a elite universitária (da qual, aparentemente, eles não fazem parte), os riquíssimos, egoístas, fascistas que apenas não querem parar as aulas pois não querem seus planos de viagem para Miami cancelados nas férias (como se esta já não fosse reivindicação legítima). Eles, é claro, são as fronts de defesa do proletariado, do povo. O pensamento dicotômico e moralista impede a visualização de todas as vivências específicas que podem ser negativamente afetadas pelo atraso nas aulas: estudantes pobres que trabalham para se manter em uma cidade distante, que não possuem o luxo de atrasar sua graduação, que se desdobram para permanecer estudando; estudantes que possuem compromissos profissionais durante o período de férias universitárias; pessoas que moram longe de seus familiares e gostariam de visitá-los; alunos da pós-graduação que terão suas pesquisas e suas bolsas radicalmente afetadas pela inacessibilidade aos prédios; alunos que estão prestes a se formar e precisam do término do semestre para prestar concursos para os quais já estão se preparando há meses; a comunidade que deixa de ter acesso a serviços prestados por universitários e projetos de extensão (aqui em Santa Maria, por exemplo, o prédio da antiga reitoria presta atendimentos odontológicos). Todos entregues à instabilidade e à incerteza. Todos taxados como egoístas ou ignorantes.
Bem, de minha parte considero, de fato, muito difícil de entender.
Mas não há nada a temer. O cacetete, este sim o agente político das vanguardas da esquerda, por mim entende.