No último artigo da série, verificamos que o conceito de crime, para um libertário, está intimamente ligado ao conceito de agressão, ou seja, só constitui um crime a relação baseada na invasão da propriedade (ou autopropriedade) de alguém. Vimos também, no primeiro artigo, a diferenciação que libertários fazem entre a moral (o que é bom ou ruim) e a ética (o que deve ou não ser ilegal).
Partindo destes dois princípios, o libertário sustenta que não cabe à lei defender o conceito de moralidade de quem quer que seja. A função da violência legal é unicamente a de defender as pessoas contra invasões de sua pessoa ou de sua propriedade, ou seja, a de defender as pessoas contra qualquer agressão. [1]
É neste contexto que demonstraremos a visão libertária, exposta e argumentada por Rothbard, em relação a temas que costumam ser objeto de discussão entre conservadores e progressistas e que, embora muitas vezes criminalizados pelo Estado, não constituem uma relação de agressão – os famosos “crimes sem vítima”.
Enquanto alguns argumentam que a pornografia deveria ser proibida por ser degradante, imoral e/ou objetificante, a visão libertária é objetiva: Desde que todos os agentes presentes no material pornográfico estejam lá por livre e espontânea vontade e tenham concordado com os fins para qual ele está sendo produzido, a pornografia caracteriza uma relação privada e voluntária. Logo, não é dever do Estado invadir os direitos de propriedade das pessoas de produzir, vender, comprar ou possuir material pornográfico – e, caso o faça, ele próprio se tornaria um agressor.
“Nos últimos anos, os progressistas felizmente vêm chegando à conclusão de que qualquer ato realizado entre dois (ou mais) adultos de maneira consensual deveria ser legal. Infelizmente, os progressistas ainda não ampliaram este critério para incluir o sexo mediante comércio ou troca, pois, se o fizessem, estariam muito perto de se tornarem integralmente libertários.” [2]
A liberdade para se prostituir nada mais é do que uma consequência lógica dos direitos naturais à liberdade e à propriedade. Sendo a prostituição uma venda voluntária de um serviço de trabalho (a troca voluntária de sexo por dinheiro), não é função do Estado proibir ou restringir.
É importante ressaltar que diversos aspectos deprimentes em relação ao exercício da profissão foram gerados justamente por conta da proibição dos bordéis. Os bordéis, como qualquer estabelecimento comercial, costumavam competir entre si para oferecer um serviço de alta qualidade – e, como estavam dentro da legalidade, eram passíveis de punição legal, boicote ou perda para a concorrência caso não cumprissem normas de segurança, normas sanitárias ou tratassem mal tanto clientes quanto funcionários(as). Foi a proibição dos bordéis e as regulações sufocantes em relação à prostituição que acarretaram na clandestinidade e na marginalização da profissão, expondo prostitutas(os) aos perigos do “mercado negro” e gerando um declínio generalizado da qualidade de vida e no ambiente de trabalho de profissionais do sexo.
É importante ressaltar que a defesa libertária em relação à legalidade da prostituição – e em relação a legalidade de qualquer prática que não caracterize uma agressão – não significa, necessariamente, uma defesa da prática em si. Da mesma forma que não cabe ao Estado utilizar-se do monopólio legal da força para coibir ações que não caracterizem invasões de propriedade, é perfeitamente ético que indivíduos ou grupos façam campanhas contra determinadas atitudes – como a prostituição – sempre na tentativa de persuadir outros indivíduos a concordarem com determinada visão, mas jamais obrigá-los ou coagi-los a tal.
Por óbvio, é impossível proibir todos os tipos de aposta – visto que, caso esta fosse a intenção, seria necessário uma escuta em cada mesa de bar e uma enorme Gestapo de milhões de homens para espionar todas as pessoas e descobrir todas as apostas. Uma vez que leis contra apostas informais são claramente inúteis e inaplicáveis, O Estado concentra seu autoritarismo em determinadas formas de jogos de azar – formas mais visíveis – como, por exemplo: Roletas, agenciadoras de apostas, cassinos, caça-níqueis, jogo do bicho, loterias, entre outros.
É exatamente aí que reside um paradoxo ético cuja defesa é totalmente insustentável: O de que, supostamente, jogos como roletas e apostas em números é algo imoral e passível de ser combatido pelo poder da polícia enquanto apostas informais são moralmente legítimas. Não faz sentido algum, justamente porque independente do tipo de aposta, esteja o apostador perdendo ou ganhando, só afetará a si mesmo e às pessoas que participaram do mesmo jogo. É um crime sem vítima, sem agressão e que, portanto, não deve ser reprimido por qualquer tipo de legislação arbitrária.
Outro ponto importante a ser ressaltado é que, no Brasil e em alguns outros países, uma nova modalidade de imbecilidade legislativa foi lançada: Todos os tipos de apostas de casas de jogos privadas são proibidos ao mesmo tempo em que são permitidas e incentivadas as apostas em Loterias estatais, que nada mais são do que outra maneira de financiar o Estado – que, aparentemente, veste um manto de moralidade diferenciado dos meros mortais e que, por isso, pode deter o monopólio dos jogos de azar para si.
Como vimos no artigo sobre Legítima Defesa, a violência defensiva só pode ser usada contra ameaças diretas e palpáveis de agressão, enquanto que critérios remotos ou indiretos são apenas desculpas para ações invasivas em prol de um suposto “bem comum” contra uma suposta “ameaça” fantasma. Um tipo de “ameaça” fantasma é a ideia de que o uso de determinadas substâncias podem fazer mal para as pessoas envolvidas ou fazer com que essas pessoas cometam crimes e, portanto, devem ser proibidas. Estranhamente, este argumento só é utilizado em relação a substâncias muito específicas (como as drogas ilícitas) – enquanto que outras (como o álcool e o cigarro), muitas vezes com efeitos parecidos ou iguais, são amplamente aceitas pela população.
É inegável que qualquer droga – seja ilícita ou não – pode prejudicar a saúde de seus usuários. Entretanto, defender a proibição de uma substância apenas porque ela prejudica a saúde de quem a utiliza nos leva à mesma jaula totalitária onde o Estado pode decidir a quantidade de sal que as pessoas colocam em sua comida ou, pior ainda, proibir alimentos com uma determinada quantia de açúcar ou gorduras. As únicas pessoas prejudicadas pelo uso de substâncias que fazem mal à saúde são elas mesmas e não é dever do Estado – ou de qualquer instituição – coagir alguém a ser saudável.
Outro argumento utilizado por entusiastas da coerção estatal em relação aos narcóticos é que existe uma ligação muito forte entre o vício e a criminalidade, o que é um fato – no entanto, a ligação existente é justamente o inverso do que o argumento a favor da proibição tenta pregar. Os viciados cometem crimes justamente pelo fato de a proibição existir, e os motivos são:
a) os preços elevados dos narcóticos ilícitos, causados justamente pela proibição, já que, uma vez legalizadas, a oferta pelas substâncias aumentaria e os preços, invariavelmente, diminuiriam*;
b) a marginalização dos usuários e vendedores que, muitas vezes, veem como a única opção a entrada em organizações criminosas em troca de proteção e ascensão financeira – organizações, estas, que são ligadas ao tráfico, que nem sequer existiria não fosse a proibição das drogas.
A prova cabal de que o que causa a ligação entre as drogas e o crime é justamente sua ilicitude é de que diversas outras drogas legais também causam vício e nem por isso tem qualquer ligação com a criminalidade. E, ainda que tivessem, argumentar a favor da proibição de algo que pode levar alguém a cometer um crime é uma agressão ilegítima e invasiva de sua propriedade e que serviria para justificar ainda mais sistemáticas invasões de propriedade através do Estado. Apenas a execução patente de um crime deveria ser ilegal, e a maneira de se combater os crimes cometidos sob a influência de quaisquer substâncias é ser mais rigoroso com os crimes em si e não a proibição da substância propriamente dita. [3]
Novamente, advogar pela legalização de qualquer droga é o mesmo que advogar pela liberdade de escolha dos indivíduos e não tem ligação com qualquer juízo de valor que se faça a respeito dos narcóticos. Como bem pontuou Rothbard:
“Façam quantas propagandas quiserem contra [quaisquer substâncias], porém deixem o indivíduo livre para viver sua própria vida.” [4]
Leia os outros artigos da série: Direitos Naturais; Legítima Defesa; O Estado
Referências Bibliográficas:
1 – ROTHBARD, Murray N. “Liberdade Pessoal” (págs 125-26) em O Manifesto Libertário.
2 – ROTHBARD, Murray N. “Liberdade Pessoal” (pág 127) em O Manifesto Libertário.
*Os preços dos narcóticos só ficariam mais elevados, mesmo com a legalização, caso houvesse uma taxação excessiva pelo Estado – o que, obviamente, nenhum libertário defende. De qualquer modo, há a possibilidade de a alta oferta compensar a taxação e diminuir os preços mesmo assim. Caso os preços continuassem na mesma faixa ou aumentassem, ainda assim a criminalidade diminuiria porque, senão todos, grande parte dos consumidores iriam preferir se manter na legalidade. Outro ponto a favor da diminuição da criminalidade, mesmo com taxação é que há uma grande diferença entre uma substância contrabandeada e uma substância traficada – cigarros paraguaios, por exemplo, não marginalizam seus vendedores nem aumentam os casos de roubo, latrocínio e homicídio.
3 – ROTHBARD, Murray N. “Liberdade Pessoal” (pág 134-35) em O Manifesto Libertário.
4 – ROTHBARD, Murray N. “Liberdade Pessoal” (pág 135) em O Manifesto Libertário.
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