Retirado do Capítulo “Bolsa Família ao Contrário” do livro Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira, de Leandro Narloch.
A ONU diz que o Bolsa Família é um exemplo de combate à pobreza e à desigualdade. The Economist, revista dos leitores mais importantes do mundo, diz que o programa “transformou vidas” ao “cortar a pobreza em 28% em uma década usando apenas 0,5% do PIB”. [1] Para o The New York Times, o Bolsa Família reforçou a renda, a educação e a saúde das crianças pobres do Brasil. [2]
Há mais um motivo para defender o Bolsa Família. Ele é uma pequena compensação a programas do governo federal que têm a direção inversa – tiram dos pobres para dar aos ricos, ou ao governo. Há no Brasil pelo menos cinco casos de Bolsa Família ao contrário. Têm um orçamento dezenas de vezes maior que o programa original, ainda que o governo evite fazer propaganda sobre eles.
Com um gasto de 26,7 bilhões de reais em 2014, o Bolsa Família atingiu 14 milhões de famílias, ou 50 milhões de pessoas – cerca de um em cada quatro brasileiros. Ao mesmo tempo, o governo destinou uma quantia quase três vezes maior – 62 bilhões de reais – para só 1 milhão de funcionários públicos federais aposentados. O valor supera não só o Bolsa Família, mas todo o sistema de aposentadoria comum, que pagou 50 bilhões a 24 milhões de pessoas. Fazendo a conta, 1 milhão de brasileiros recebe do governo mais que outros 41 milhões de brasileiros.
A aposentadoria integral dos funcionários públicos acabou em 2013 – quem passou em concurso depois dessa data não tem mais direito a se aposentar com o salário integral. Mas até os novos funcionários se aposentarem, a contribuição do governo para a concentração de renda vai continuar por algumas décadas.
Mais caro ainda é o sistema de aposentadorias militares. Ele custa o mesmo que o Bolsa Família, mas atende só 300 mil brasileiros. Do total, apenas 2 bilhões de reais vêm de contribuição dos militares na ativa. Ou seja: o rombo de quase 22,5 bilhões de reais é financiado pelos brasileiros em geral – entre eles, gente que recebe o Bolsa Família.
É verdade que os funcionários públicos e os militares têm direito adquirido à aposentadoria e contribuíram para ela. Mas, num debate sobre desigualdade, o que basta é saber que essas transferências concentram a renda. Além disso, é difícil negar que há mordomias demais nas aposentadorias dos servidores – não só mordomias, mas também falcatruas.
A filha de militar que não se casa no papel para não perder a pensão já é um personagem clássico do Brasil. Dos 300 mil pensionistas do sistema militar, 90 mil são filhas solteiras de militares, que recebem 4 bilhões de reais por ano. O direito das filhas à pensão vitalícia foi derrubado em 2000, mas, de novo, a nova regra vale só para as filhas de quem virou militar a partir de então. A revista Época revelou diversos casos de pensionistas casadas no religioso, mas solteiras no civil. Uma “solteira” gastou 200 mil reais na festa de casamento. Outra tinha sete filhos com o mesmo homem – que, segundo ela, era apenas um namorado. [3]
Caro leitor, estou precisando de um dinheirinho emprestado, será que você poderia me dar uma ajuda? Você me empresta 200 reais por mês e eu prometo devolver com juros correspondentes à metade da inflação. Mas só devolvo se você ficar doente, for demitido ou quiser comprar uma casa. Topa?
Todo trabalhador, quando ingressa num emprego com carteira assinada, precisa aceitar essa proposta não exatamente tentadora. Todo mês é obrigado a deixar 8% do salário numa conta da Caixa Econômica Federal vinculada ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Desde 1999, o FGTS é reajustado pela fórmula “3% mais zero”. Quer dizer, 3% mais a Taxa Referencial (TR). Como o governo pode reduzir a TR como bem entender, ela costuma ficar perto de zero – foi de 0,19% em 2013 e 0,86% em 2014. Impossível pensar numa forma melhor de esculhambar a economia dos pobres. O fundo rende menos que um título público, menos que a poupança e até mesmo menos que a inflação. Se uma pessoa investisse mil reais no FGTS em 1999, teria 1.340,47 reais em 2014. O problema é que, por causa da inflação, o poder de compra de mil reais em 1999 equivale ao de 2.586,44 reais quinze anos depois. Ao ser obrigado a investir no FGTS nesse período, o cidadão perdeu 88% do poder de compra.
Há nos tribunais brasileiros quase 40 mil ações exigindo uma correção decente que pelo menos cubra a inflação, além de uma compensação por perdas. O Instituto Fundo Devido ao Trabalhador calcula que, só em 2014, a diferença entre a correção do governo e a correção justa, pela inflação, foi de 35 bilhões de reais. É bem mais que o Bolsa Família daquele ano. No acumulado desde 1999, a diferença chega a 254 bilhões de reais, segundo o instituto. Este valor é, atualmente, maior que o valor de mercado da Petrobras. Eis a conclusão aterradora. Desde 1999, o governo tirou, via FGTS, uma Petrobras inteira dos trabalhadores brasileiros. E ainda sobraria um troco de 50 bilhões de reais.
Para alívio de quem tem conta de FGTS, em 2015 o Congresso aprovou um reajuste maior, mas só para novos depósitos. Eles serão reajustados conforme a poupança – que muitas vezes paga menos que a inflação.
Alguém poderia argumentar que não é o trabalhador quem paga o FGTS, e sim o patrão. Mas um princípio básico da economia é que o ônus de impostos e taxas é compartilhado tanto por compradores quanto por vendedores de um bem. Também é assim com salários. Se a mão de obra encarece, os empregadores contratam menos pessoas. Com a menor demanda, os trabalhadores têm menos opções, e precisam aceitar salários menores. Ou seja: o funcionário ganha um pouco menos, o patrão paga um pouco mais. Os dois perdem.
De todos o modesto 1 trilhão de reais que prefeituras, estados e a União arrecadaram em 2014, metade veio de pessoas que recebem até três salários mínimos. A mordida, aqui, não é tanto no imposto de renda, mas nos tributos ocultos nos preços do supermercado.
Os impostos sobre o consumo mordem mais os pobres, pois, em relação aos ricos, eles gastam uma parte maior do salário em compras. Segundo o IBGE, os 10% mais pobres perdem 32% do que ganham em impostos; com os 10% mais ricos, esse número cai para 21%.
Por exemplo, digamos que o imposto médio sobre o varejo seja 30% e que uma pessoa gaste mil reais por mês com mercado, padaria, restaurante, roupas e transporte. Só de impostos, seriam 300 reais. Se o salário da pessoa é de 2 mil reais, o imposto morderia 15% da renda. Mas se ela ganha 10 mil reais, os impostos indiretos caem para 3% da sua renda. Mesmo que ela se empolgue no mercado, encha o carrinho de pistache e uísque, e no fim do mês gaste 3 mil reais em consumo, deixará 900 reais (ou 9% da sua renda) em impostos.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) recebeu do governo quase 288 bilhões entre 2010 e 2014, e emprestou esses recursos para gente muito carente e necessitada, como Eike Batista, Marcelo Odebrecht e Abilio Diniz. Detalhe: todos esses empresários fizeram doações eleitorais à candidata Dilma Roussef nas últimas eleições.
O dinheiro do BNDES não é doado, e sim emprestado. Mas, se algum dia for pago, será com juros camaradas. A taxa média de juros dos grandes financiamentos do BNDES foi de 5% em 2014. Como isso é a metade da taxa de juros determinada pelo próprio governo para pegar dinheiro emprestado, significa que o governo perde ao emprestar. Quem paga a diferença você já sabe quem é. Por ano, o subsídio aos empréstimos custou 30 bilhões de reais – 3,3 bilhões a mais que o Bolsa Família. O Ministério da Fazenda estima que, até os empréstimos serem pagos, serão 188 bilhões de reais gastos pelo governo em subsídios. Só em 2014, o governo injetou 60 bilhões no BNDES. [4] Esse valor é um terço do aumento da dívida pública naquele ano – e quase o mesmo que o ministro da Fazenda Joaquim Levy tentou, mas não conseguiu, economizar no ano seguinte.
Na Inglaterra, nos Estados Unidos ou no Quênia, ligar para um celular de outra operadora custa tão barato quanto de Tim para Tim no Brasil, ou quanto uma chamada entre telefones fixos. Isso porque a taxa de interconexão – ou seja, o valor acertado entre as operadores para uma delas utilizar a rede da outra – não existe ou é irrelevante. No Brasil, essa taxa existe, ô se existe! É uma das mais altas do mundo.
Nos anos 1990, começo da telefonia celular no Brasil, a taxa de interconexão (conhecida por VUM, “Valor de Uso Móvel”) fazia algum sentido porque era preciso incentivar as operadoras a investir em antenas e difundir o sinal de celular pelo país. O governo estabeleceu uma taxa generosa, dez vezes maior que a dos telefones fixos. Nasceu assim a diferença de preço entre chamadas de telefones fixos e móveis. Como pouquíssimos brasileiros tinham telefone celular, a tarifa maior tornava o negócio atraente.
A situação mudou em 2010. As redes estão prontas; há mais linhas de celulares que pessoas no Brasil. O total tanto de telefonemas fixos quanto de moveis está caindo – uma das razões é que as mensagens por aplicativos como o WhatsApp substituem a velha conversa telefônica. Com menor demanda, o governo e as operadores entraram num acordo para baixar o VUM. Em 2015, a taxa caiu de 24 centavos para 16 centavos – uma redução de 33%.
A taxa de interconexão deve chegar perto de zero nos próximos anos. Até lá, terá tirado um bom dinheiro dos brasileiros. Só em 2014, as quatro grande operadoras de celular do país (Vivo, Claro, Tim e Oi) receberam 9,7 bilhões de reais em taxas de interconexão. [5] É quase 40% do Bolsa Família naquele ano, sem contar os impostos que incidem sobre aparelhos telefonemas.
Imagine uma pessoa que quebra as suas pernas e logo depois dá a você um par de muletas, dizendo “veja, se não fosse por mim, você não seria capaz de andar”. [6] É mais ou menos assim a ação do Estado brasileiro na pobreza e na desigualdade. Ele concede privilégios a grandes empresários, mantém aposentadorias milionárias, torna os produtos do supermercado mais caros para os pobres e obriga todo trabalhador a investir numa conta que reajusta menos que a inflação. Depois, como se nada tivesse acontecido, se diz muito preocupado com os pobres, e anuncia um programa de transferência de renda para reduzir a miséria e a desigualdade que ele próprio criou.
*Retirado do capítulo “Bolsa Família ao Contrário” do livro “Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira”, de Leandro Narloch.
Fontes:
1 – The Economist, “Helping the poorest of the poor”, 8 de Janeiro de 2015.
2 – The New York Times, “Brazil’s Next Steps”, 8 de Outubro de 2013.
3 – Raphael Gomide, Época, “As filhas de servidores que ficam solteiras para ter direito a pensão do Estado”, 19 de Novembro de 2013.
4 – Alexandre Martello, G1, “Dívida pública sobe 8,15% em 2014 para R$2,29 trilhões”, 28 de Janeiro de 2015.
5 – Teleco, “Dados operacionais e econômicos anuais da Vivo móvel, incluindo quantidade de Celulares, Arpu, MOU, Churn, SAC, Empregados, Receita, Margem Ebitda, Ebit, Lucro e Investimentos”, 25 de Fevereiro de 2015. Disponível em http://www.teleco.com.br/Operadoras/Vivo.asp
6 – A comparação é do político americano Harry Browne