A chegada de Bolsonaro ao poder e a imposição da agenda liberal de Paulo Guedes já começa a dar um nó na cabeça de muitos “liberais” ditos por aí. Semanas atrás tivemos uma demonstração disso quando ocorreu polêmica na extinção da taxa de importação de leite em pó oriundo da Europa e Nova Zelândia.
Em resumo, os produtores brasileiros, junto ao governo, acusam os neozelandeses e a União Europeia de praticar dumping no comércio internacional contra o Brasil o que justificaria a instituição da equivalência nos termos de troca, utilizando-se de uma tarifa antidumping para com esses países.
O comércio internacional, a bem da verdade, não é um campo de análise muito fácil para os liberais. De fato: todos sabem que a liberação das tarifas e o incentivo irrestrito ao comércio entre os países estimularia as vantagens comparativas entre estes e faria com que ambos produzissem aquilo que melhor fazem comprando do outro aquilo que o outro melhor faz.
Em um resumo grosseiro, o jogo é de “ganha-ganha” porque cada país vai se tornando mais produtivo internamente e comprando do outro aquilo no qual é menos produtivo internamente. As pessoas (fator de produção) utilizam melhor o capital, a terra, o trabalho e inclusive o tempo naquilo que fazem melhor ou que possui fatores produtivos mais abundantes (como preceituaram os economistas Eli Heckscher e Bertil Ohlin).
Todos por venderem a um preço melhor (dada a maior produtividade) agora possuem maior poder de compra (dado que o poder de comprar advém da remuneração da produtividade das famílias).
No entanto, no mundo real, é o protecionismo que impera e, de fato, liberar tarifas de importação sem melhorar a competitividade interna pode ser altamente arriscado para a produção de um país. Então qual é a polêmica?
Provavelmente, o ponto mais crucial é a identificação dos incentivos. O Brasil possui uma forte mentalidade protecionista. Isso deriva de décadas de um estado fortemente interventor e promotor setorial do mercado. Temos um comércio internacional historicamente fechado e seguimos apostando na política de campeões nacionais em setores escolhidos pelo governo como estratégicos –, isso ocorre, no mínimo, desde a República Velha e chega até o desgoverno de Dilma Rousseff.
O primeiro equívoco está em julgarmos que há, de fato, setores que merecem maior protecionismo e que estes geram dinâmicas internas capazes de nos tornarmos suficientemente produtivos no setor escolhido.
O segundo equívoco deriva da ideia de que é necessário termos indústrias para o país crescer. O conceito parte da premissa de que a indústria (por produzir em maior valor agregado) tem capacidade de encadear os demais setores para trás e pra frente na cadeia produtiva fazendo com que a riqueza se espalhe na sociedade.
Esse argumento é tolo porque ignora o estoque de fatores da economia em questão. Não adianta subsidiar indústrias se o estoque de capital no país está baixo (em economês isso é medido pela formação bruta de capital fixo, essencialmente). O mesmo serve para a agricultura: faria sentido estimular, via políticas setoriais de governo, plantações em um país com pouca extensão de terras? Logicamente não.
Ora, o que não faz sentido para a análise de um fator não deve fazer sentido para a análise dos demais fatores de produção.
Obviamente, o capital pode ser acumulado internamente ao longo do tempo, basta que estimulemos a taxa de poupança interna ou mesmo nos financiemos, temporariamente, com poupança externa via investimento estrangeiro direto (IED). Pode-se também aumentar o volume de exportações ou valorizar o câmbio possibilitando a importação barata de tais capitais (observação no final do texto).
Em resumo, é possível industrializar o país. Mas não escolhendo setores e, sim, estimulando a poupança interna. Após isso, com o capital “barato”, a bola está com os empreendedores. São eles que descobrem oportunidades futuras para o atendimento de demandas específicas. São esses empreendedores que possuem a capacidade de alocar mais eficientemente os fatores de produção da economia (e não o governo). Mas o que tudo isso tem a ver com a cadeia do leite? Ora bolas, isso tudo acima é o que menos verificamos na cadeia produtiva desse setor e dos demais.
O que temos aqui é um governo que não estimula a poupança privada interna (devido ao nosso caridoso welfare state), que recorre à déficits nominais crescentes (drenando a pouca poupança privada interna) e que, por isso tudo, acaba asfixiando o setor produtivo com altos impostos e grandes desvalorizações monetárias.
Num cenário de tamanha bagunça interna qual é de fato a capacidade do produtor em competir com o resto do mundo que tem custos relativos mais baixos, moeda com maior poder de comprar e capacidade de reinvestimento?
O problema não é o suposto dumping. O problema é a nossa competitividade. Um país travado internamente, inexoravelmente, terá que se proteger para garantir um pouco de rentabilidade no comércio internacional. A luta do produtor não é (ou não deveria ser) contra os europeus ou neozelandeses, mas sim contra o Estado: que se endivida, desvaloriza a moeda, cobra altos impostos e, por isso, impossibilita-nos de formar poupança, baixar o custo do capital (juros) e, assim, crescer para, finalmente, competir.
O setor produtivo brasileiro padece na obsolescência tecnológica e a culpa é sim do Estado. Enquanto nossos produtores não enfrentarem o problema de frente, continuarão a competir por lobbys ao invés de competir pelo gosto dos consumidores. Nesse arranjo, perde todo mundo. Perde o consumidor, perde o produtor, ganha o estado e aqueles que são amigos do rei. Isso não é liberdade, isso não é capitalismo.
Observação: aqueles que argumentam sobre a possibilidade de desequilíbrios no balanço de pagamentos, devem lembrar-se que: em um política de câmbio flutuante, com austeridade fiscal e política monetária responsável não há porque termos crises no balanço de pagamentos, nesse cenário, a moeda se ajusta às flutuações de mercado, bem como faz a conta de capital e a conta de transações correntes.
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Data: 01/03/2019