Como a sociedade tem esquecido o que a fez enriquecer, colocando a liberdade como um valor secundário e os perigos provindos disso. 


Em 1954, John B. Calhoun realizou um experimento conhecido como “Utopia dos ratos” ou “Universo 25”. A proposta era relativamente simples: construiria-se um grande espaço com temperatura controlada, água, comida e abrigo abundantes, onde seriam colocados inicialmente quatro pares de camundongos saudáveis. A ideia inicial era observar qual seria o comportamento desses mamíferos diante da superpopulação, questão muito debatida na década em que Calhoun realizou o ensaio, porém esse talvez tenha sido o menor dos problemas para os camundongos e o mais impressionante, na realidade, foram os paralelos que se podem fazer entre o progresso dos ratos dentro de seu “paraíso” e a sociedade humana. 

A primeira fase do experimento foi denominada “fase de estrutura”, quando os camundongos começaram a se organizar, fazer seus ninhos, definir os papéis de cada indivíduo no grupo etc. Analogamente, temos o longo período da história humana que vai do período ágrafo até o início da revolução industrial, quando os humanos, devido ao avanço tecnológico provocado pelo capitalismo, passaram a ter a possibilidade de acessar quase todos os recursos terrestres, proporcionando uma sensação, talvez, similar a dos camundongos de não ter de lidar com escassez2. Também, assim como ocorre com os ratos que definem os papéis sociais dos integrantes da comunidade, durante esse longo período, os seres humanos estabelecem as bases sociais, as quais servirão de sustentáculo para o sistema econômico3: a moral judaico-cristã, a filosofia grega, o direito romano e, por último mas não menos importante, o ideal iluminista britânico4 de liberdade. Esse último, essencial para o futuro estabelecimento de um sistema de livre mercado, que, devido a sua enorme capacidade de geração e alocação de riquezas, foi o responsável por proporcionar, de início para as camadas mais ricas, porém com o tempo para um número cada vez maior de pessoas, uma experiência de utopia dos ratos. Obviamente, não chegamos ao nível dos camundongos que sequer tem de labutar para obter seu sustento, porém mesmo eles precisavam construir ninhos e alimentar os filhotes, situação comparável a crescente melhoria das condições de trabalho na sociedade humana, inicialmente submetida a longas horas de serviço pesado no campo e, atualmente, na maioria dos casos, exercendo suas atividades em escritórios climatizados e com jornadas bem menores. 

A próxima fase foi denominada “fase de exploração”, quando os ratos começaram a se reproduzir a uma taxa muito elevada, em cerca de 55 dias a população dobrava de tamanho. Mais uma vez fazendo um paralelo com a história humana aqui poderíamos ter o período pós primeira revolução industrial, quando a população começa a crescer exponencialmente. 

Agora adentramos as duas últimas etapas: a “fase de estagnação” e a “fase de morte”.

Nesses momentos a antiga utopia começa a se tornar macabra. Certos ratos denominados pelos pesquisadores de “machos dominantes” começam a controlar alguns territórios limitando o fluxo de outros indivíduos por eles e instalando uma verdadeira tirania. Esses espécimes abandonam seus papéis sociais, parando de se reproduzir, e começam a atacar e até canibalizar, sem motivo aparente, pois não havia falta de comida, tanto os camundongos que tentavam manter uma vida normal, quanto uma nova classe formada concomitantemente aos dominantes: os “ratos ômegas”, que eram tímidos e não conseguiam ou perdiam o interesse em atrair fêmeas se isolando quase completamente.Os constantes ataques dos dominantes geraram um comportamento agressivo nas fêmeas que agora tem de cuidar e proteger suas ninhadas, por fim acabam sendo observados abandonos e até ataques aos filhotes por parte das próprias mães, devido ao estresse a elas imposto. Com a completa destruição dos papéis sociais, a próxima geração de ratos nasceu sem exemplos a seguir, sem instruções sobre acasalamento, marcação de território ou sobre os papéis de paternidade e maternidade. Portanto, eles apenas comiam, se hidratavam e se higienizavam; sendo chamados de “belos” pelo autor do estudo. Calhoun também diz que essa geração foi responsável pela “primeira morte” daquela comunidade, uma morte “espiritual”, devido a apatia social, a falta de propósito e a falta de desejo de um futuro por parte dos “belos” a “segunda morte”, ou seja, a morte física do último rato e a extinção da comunidade era inevitável, o que de fato aconteceu por volta do 600º dia. 

Felizmente, não é possível estabelecer um paralelo completo entre as duas últimas fases do experimento e a nossa sociedade, apesar de ser um tanto assustador notar alguns sinais parecidos com a fase de estagnação em nossos dias. De fato, não se deve cair no erro de acreditar de que nosso destino, inevitavelmente, será o mesmo da “utopia dos ratos”, afinal podemos até ser mamíferos, mas dificilmente alguém discordaria que estamos  cognitivamente pelo menos um pouco acima dos roedores, sendo nossa sociedade bem mais complexa justamente por isso. Todavia, há algo primordial a se aprender com o experimento: quando as bases que geraram a riqueza e a estabilidade de uma civilização são esquecidos ou deliberadamente destruídos a decadência é iminente e irreversível.

Infelizmente parece existir um grande movimento a favor de que trilhemos esse caminho sombrio. As gerações a partir do final da segunda guerra tem se assemelhado aos ratos da “fase de estagnação”, que, talvez “mal acostumados” pela vida confortável, se cansaram até mesmo de realizar as tarefas básicas garantidoras da continuidade de sua espécie antes realizadas por seus pais, como fazer ninhos e alimentar a prole. Como perceberam os psicólogos americanos Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, que realizaram amplos estudos com os universitários daquele país culminando no livro “The Coddling of the American Mind”, a juventude parece viver sob três mantras “O que não te mata te deixa mais fraco”, “sempre confie nos seus sentimentos” e “a vida é uma batalha entre pessoas do bem e pessoas do mal”. O primeiro e o último, em especial, têm ampla responsabilidade pelo crescente ódio ao sistema de livre mercado, pois o espírito empreendedor necessário a esse sistema reside no constante exercício de tentativa e erro, que segundo os psicólogos tem sido extinto, pois a superproteção dada aos jovens os fez nunca ter de lidar com o fracasso durante o crescimento, assim, quando se depara com situações difíceis na vida profissional ele recorre ao último mantra e culpa “os grandes empresários, “os banqueiros” ou “o patriarcado” por seu insucesso.

As novas gerações vêm crescentemente enxergando no sistema de mercado uma estrutura opressiva e que exigiria sacrifícios demais para melhorar a qualidade de vida, apesar de, alguns séculos atrás, essa ascensão social ser simplesmente impossível, por vezes, até proibida por lei, enquanto hoje pode acontecer de inúmeras formas. como já percebia F.A. Hayek em 1944: 

A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa. As pessoas mais velhas poderão considerar exagerada essa imagem da situação atual, mas a experiência diária do professor de universidade não deixa dúvidas de que, como resultado da propaganda anti-capitalista, a alteração dos valores já está muito adiantada em relação às mudanças que até agora se têm verificado nas instituições deste país. Resta ver se, transformando as nossas instituições para atender às novas reivindicações, não destruiremos inadvertidamente valores que ainda reputamos superiores.”7 

Como percebeu o economista austríaco, se por um lado existe uma crescente visão negativa do capitalismo, por outro existe uma valorização do setor público e dos cargos por eles ofertaram, não só devido a estabilidade e outros benefícios geralmente ofertados por esses empregos, mas também por uma ideia de que tais ocupações seriam mais “honrosas” e não teriam seu pagamento advindo da “exploração” dos subordinados, ideia que se encaixa perfeitamente com o último dos mantras da juventude identificados por Haidt e Lukianoff. Todavia, no furor dos pedidos por mais empregos públicos se ignora que apenas o setor privado gera riqueza o público apenas a transfere, pois sobrevive dos tributos do primeiro, assim, se um é “explorador” o outro é em dobro. 

Outra face desse movimento se mostra nos que não dizem ser contra o sistema de mercado como um todo, mas apenas querem algum controle do “capitalismo selvagem”, censurando apenas a “ganância excessiva” de alguns empresários, mediante ações interventivas mais amplas do governo, dessa forma acabando com o “homem econômico” consumista e individualista, promovendo maior solidariedade entre as pessoas. Fofo, porém tristemente errado, como mais uma vez alerta Hayek: 

O que distingue esta geração não é o desprezo do bem-estar material, nem mesmo um menor desejo de conquistá-lo, mas, ao contrário, a recusa a reconhecer quaisquer obstáculos, qualquer conflito com outras finalidades que possam impedir a realização dos seus desejos. Economofobia’ seria uma denominação mais apropriada a essa atitude do que o termo duplamente enganador ‘fim do homem econômico”‘.8 


Além disso, assim como os “machos dominantes”, os “ratos ômegas” e as fêmeas que, motivadas pelos dois outros grupos, abandonaram seus papéis sociais; desde a década de 60 existem fortíssimos movimentos culturais que tem pregado constantemente pela destruição dos valores ocidentais com um argumento parecido com o daqueles que se revoltam contra o sistema de livre mercado, ou seja o de que eles seriam opressores e coercitivos.O erro desses movimentos não está propriamente em contestar esses valores,que por vezes foram revistos sem terem de ser destruídos no processo, mas sim em pregar a “desconstrução pela desconstrução”, pois quando simplesmente se quer acabar com os papéis sociais, a moral e os valores sem colocar nada no lugar cria-se apenas um vácuo como aquele no qual nasceu a geração de “belos” do experimento, que não tem ideia de como sustentar e dar prosseguimento uma estrutura tão complexa como a sociedade, pois não tem mais ou não está mais autorizada a usar os conhecimentos acumulados nas gerações passadas manifestados na forma dos costumes. 

Vemos a fusão completa dos que querem substituir o sistema econômico e o social em alguns movimentos recentes como “Occupy Wall Street”, “Black Lives Matter” e até mesmo nas grandes manifestações brasileiras de 2013. A semelhança desses grupos com os “machos dominantes” é tremenda, principalmente em dois sentidos: (1) atacam violentamente aqueles que não tem culpa, dois exemplos são as depredações e saques a lojas aleatórias nos protestos do BLM e nas manifestações brasileiras de 2013, (2) “reclamam de boca cheia”, esses movimentos têm atacado justamente o sistema que lhes deu condições jurídicas e materiais9 de estar protestando. 

Por fim podemos pensar: mas como a sociedade humana nunca inventou algum mecanismo que instruísse as novas gerações sobre as conquistas do passado, ensinando-as a valorizar o que nos trouxe melhores condições, assim, prevenindo uma situação semelhante a “utopia dos ratos”. Bom, nós criamos… se chamam: professores, porém ocorreu um problema: surgiu uma ideologia que subverteu totalmente o papel do educador, representada em terras tupiniquins pelo nosso grandiosíssimo patrono da educação: Paulo Freire, nessa corrente de pensamento o professor passa a ser considerado um revolucionário, sendo o responsável por promover as transformações sociais mediante a conscientização dos jovens. O problema fica nítido: se o professor deve olhar para o “futuro” no papel de reformador social, quem nos relembra do passado? Quando se observa o passado com um olhar revolucionário ele sempre parecerá retrógrado, atrasado e menos tolerante, dessa forma, iniciou-se a criação de uma geração de “belos” e se os defensores da liberdade não se unirem para relembrar as novas gerações da importância dos ideais e do sistema que possibilitaram o incrível melhoramento das condições de vida da sociedade, estaremos rumando para a primeira morte de nossa espécie e a segunda, será só questão de tempo. 

Notas:

1 Ratos e camundongos são espécies diferentes e no experimento foram usados apenas os últimos, porém, como não se trata de um trabalho de zoologia, os termos serão usados de maneira indistinta no presente artigo.


2 A ciência econômica há muito já sabe que tais recursos são, na realidade, escassos e estuda como aloca-los racionalmente, porém aqui tratamos principalmente do efeito psicológico, que veio junto com o estabelecimento do capitalismo, que proporciona até hoje a sensação de inexistência de escassez, afinal, a não ser que você resida em um país socialista, toda vez que vamos ao mercado, por exemplo, encontramos os produtos que desejamos em grande quantidade e variedade, muito diferentemente da realidade da maior parte da história humana quando esse acesso a recursos era extremamente limitado. O que também não quer dizer que todos tenham acesso a tudo aquilo exposto nas prateleiras, porém a humanidade vive o momento de menor pobreza (desconsiderando a situação da covid-19) na história, segundo o banco mundial, e ela, felizmente, segue diminuindo.

3 Atualmente superestimamos o quanto essas bases são “socialmente construídas”, todavia psicólogos como Jonathan Haidt em seu livro “A Mente Moralista” mostram que a mente humana não é como um caderno em branco onde se escreve qualquer coisa, mas sim, como a dos outros mamíferos, uma espécie de caderno de rascunhos no qual vários atributos já estão “rabiscados” pela genética, apesar de esses traços poderem ser “apagados” em alguns indivíduos que se esforçam para tal, isso não é o que ocorre com a grande maioria das pessoas. Portanto essas bases seriam mais uma expressão formalizada da nossa maneira natural de pensar do que algo construído propositalmente para satisfazer os interesses de algum opressor, como a visão corrente dita.

4 Usa-se aqui a concepção de iluminismo da historiadora Gertrude Himmelfarb, que divide esse fenômeno em Iluminismo britânico, iluminismo americano e Iluminismo francês; estando os dois primeiros mais ligados à tradição conservadora/liberal/libertária e o último mais ligado à tradição “progressista”/liberal de esquerda/”liberal” no sentido norte americano do termo.

5 Fonte: laboratório de demografia e estudos populacionais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Disponível em: https://www.ufjf.br/ladem/2012/05/20/a-transicao-demografica-e-o-crescimento-populacional-no-mundo-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

6 Apollo and Dionysus de Leonid Ilyukhin, simbolizando a escolha do homem (ao centro) entre a ordem (Apolo do lado direito) e o caos (Dionísio do lado esquerdo). Representando a escolha que teremos de fazer entre uma sociedade que segue o rumo que lhe levou ao presente estado de riqueza ou o mesmo caminho caótico responsável por levar os camundongos ao declínio.

7 HAYEK, F.A. O caminho da servidão. 6. ed. São Paulo: Lvm, 2010. 135-136 p.

8 HAYEK, F.A. O caminho da servidão. 6. ed. São Paulo: Lvm, 2010. 192 p.

9 Afinal, ter tempo livre para protestar já é um sinal de que a população tem enriquecido, de outra forma não disporiam desses momentos, pois teriam de estar trabalhando. Isso se torna ainda mais nítido quando se observa que grandes protestos frequentes são um fenômeno muito recente, antes disso quando ocorriam podiam surgir, no máximo, na forma de um único grande dia de protestos, como se via nas manifestações operárias do século XIX e início do século XX.

Referências:

● HOCK, Roger R.. Forty Studies that Changed Psychology: Explorations into the History of Psychological Research. 5. ed. San Diego: Prentice Hall, 1992. 336 p. 

● CALHOUN JB. Population density and social pathology. Sci Am. 1962 Feb;206:139-48. doi: 10.1038/scientificamerican0262-139. PMID: 13875732.

● HAYEK, F.A. O caminho da servidão. 6. ed. São Paulo: Lvm, 2010. 232 p.

● HAIDT, Jonathan. A mente moralista. Rio de Janeiro: Alta Cult, 2020. 448 p

● HAIDT, Jonathan; LUKIANOFF, Greg. The Coddling of the American Mind: how good intentions and bad ideas are setting up a generation for failure. Toronto: Penguin, 2019. 352 p. 

● VON MISES, Ludwig. As seis lições: reflexões sobre política econômica para hoje e amanhã. 8. ed. São Paulo: Lvm, 2017. 304 p.

● HIMMELFARB, Gertrude. Os Caminhos Para Modernidade. IluminismosBritânico, Francês e Americano. São Paulo: É Realizações, 2011. 304 p.

Postagens Relacionadas