Autor costura realidade e ficção em uma aula sobre liberdade e criptomoedas
A memória humana é narrativa: não há dúvida disso. Nós guardamos muito melhor um enredo (com início, meio e fim) que uma infinidade de dados e teorias. Muitos concordam que a melhor maneira de ensinar sobre qualquer assunto é contando uma história. O advogado e autor Rafael Boskovic, 34, usa muito bem desta técnica em seu último livro publicado, “Satoshi”, três vezes bestseller na Amazon apenas este ano.
Se nenhum professor ensinou mais filosofia na escola que Jostein Gaarder em O Mundo de Sofia, talvez no futuro algo semelhante poderá ser dito de Rafael Boskovic e o mundo das criptomoedas. O autor blumenauense nos joga em um universo distópico, onde governos “democráticos” articulam a criação de uma governança global, liderada pelo Presidente Blythe, dos EUA, sob o pretexto de perseguir o web-terrorismo.
Um dos principais alvos dos governos nas medidas de segurança são claramente os Bitcoins, moedas descentralizadas, impossíveis de rastrear e alheia ao controle governamental. Nessa conjuntura, logo no início do livro nos encontramos sentados em uma palestra do economista e anarquista de livre mercado Ulrich Fersen, um dos maiores especialistas em criptomoedas no mundo, um dos primeiros a ter Bitcoins e um dos poucos que manteve contato com Satoshi Nakamoto, o criador do Bitcoin, embora nunca o tenha visto na vida.
Uma agente da CIA, Claire Atkins, se junta à trama para investigar um galpão usado na mineração de Bitcoins. Preocupada que as criptomoedas estivessem ligadas à prática de crimes virtuais, como pedofilia e o tráfico de menores. Ela procura por Ulrich para sanar suas dúvidas, mas logo cai com ele em uma fuga ao descobrir que uma “organização muito poderosa” estaria atrás deles.
O livro é de fácil leitura, com enredo simples e muitos diálogos, o que torna a leitura suave e cinematográfica. Ao longo do enredo, Boskovic vai explicar, nas falas de seus personagens, muitos conceitos chaves do funcionamento das criptomoedas e da economia, tais como lastro, blockchain, inflação e deflação.
De início, ele nos apresenta um questionamento interessante do maior credo compartilhado do mundo: a fé monetária. O que faz o dinheiro ter algum valor? Essa pergunta ele responde logo nas primeiras páginas. Se o leitor não sai adquirindo suas criptomoedas ao fim do livro, é certo que ele comece a olhá-las com mais respeito, ou ao menos, com atenção.
Há muitas maneiras de definir Satoshi: uma distopia iminente, um thriller “dan-brownesco”, mas a melhor seria “um manual sobre Bitcoins, em 197 páginas, com personagens e enredo”. O autor sabe costurar muito bem realidade e ficção (recheando-a de easter eggs) para dar uma aula sobre criptomoedas e liberdade.
Entretanto, uma pergunta fica em aberto: quem, afinal, é Satoshi? Por que ninguém nunca o viu? Sem spoilers! Para saber disso você vai ter que mergulhar na fuga com Claire e Ulrich.
Quando veio a ideia de escrever o livro?
Rafael Boskovic — A ideia do livro surgiu junto com a vontade de escrever uma história que, de forma fluída e suave, explicasse princípios básicos do funcionamento do Bitcoin e também da ética libertária. Nos meus livros anteriores já existiam personagens libertários e um ou outro diálogo que abordava temas relacionados à Liberdade ou à intervenção estatal, mas nunca de forma tão clara e direta como em “Satoshi”.
Para você, qual a importância de produções culturais com teor libertário?
RB — Para citar Ludwig von Mises: “Ideias, e somente ideias, podem iluminar a escuridão”. Quanto menos conhecida for uma ideia, menor é a sua força. Precisamos expor o maior número possível de pessoas à luz das boas ideias e, assim, certamente muitas dessas pessoas irão assimilá-las, algumas irão incorporá-las e talvez até passem a defendê-las. Livros, filmes, séries, e até músicas são excelentes meios de levar pessoas a, pela primeira vez, interessarem-se por determinados assuntos. Um dos meus objetivos ao escrever “Satoshi” foi de que fosse um livro que pudesse ser presenteado a uma pessoa até então alheia às ideias de Liberdade e que, de maneira sutil, esta pessoa acabasse sendo introduzida a estas ideias.
Por que não há tantas produções culturais liberais e libertárias em relação a produções de esquerdistas e socialistas, por exemplo?
RB — No livro “A Mentalidade Anticapitalista”, Mises traz uma tese que me parece fazer muito sentido a respeito da mentalidade socialista de boa parte dos artistas e intelectuais. O caso é que em um sistema capitalista, são melhor recompensadas pelo mercado aquelas pessoas que entregam, com eficiência, bens ou serviços pelos quais muitas pessoas estão dispostas a pagar.
Quando um intelectual testemunha do próprio esforço para acumular uma enorme quantidade de conhecimento, é comum que lhe surja um gigantesco ressentimento ao perceber que alguém que lhe parece merecer muito menos, como o jogador de futebol Neymar, por exemplo, é infinitamente melhor recompensado pelo mercado. Aos olhos do intelectual esta situação é extremamente injusta, pois ele, por ter acumulado tamanha riqueza intelectual, seria muito mais merecedor de milhões de dólares como recompensa do que o garoto que joga bola. Ocorre que, sem nenhuma dúvida, a demanda por assistir a uma bela partida de futebol é radicalmente maior do que a demanda por assistir a uma palestra de um intelectual. O mercado trata-se do que as pessoas querem, mas um intelectual “injustiçado” não aceita isso.
O mesmo ocorre em relação a grande parte dos artistas. Sendo “arte” algo de muito difícil conceituação, bem como tendo o seu valor uma subjetividade maior do que a valoração da maior parte de outros bens e serviços, muitos artistas sentem-se injustiçados pelo mercado, por acreditarem que os seus talentos sejam muito mais valiosos do que aquele dinheiro que as pessoas estão dispostas a pagar por ele (isso quando estão dispostas a pagar algo).
É claro que uma pequena parcela de artistas e intelectuais, por sorte ou competência, acabam conseguindo atrair o interesse do mercado para os seus talentos de forma a enriquecer. Mesmo assim, porém, continuam defendendo ideias socialistas. O fato é que eles continuam imersos em um mar de relacionamentos com aqueles artistas e intelectuais “injustiçados” e ressentidos e, além de ser difícil enxergar fora da bolha, a revelação de convicções que contrariem a mentalidade predominante poderá resultar no ostracismo. Assim, seja por não respirar fora da patota ou para evitar a expulsão da tribo, ainda que as causas do ressentimento sejam soterradas por montanhas de dinheiro, o socialismo dos intelectuais e artistas bem-sucedidos persiste.
Quais autores narrativos lhe influenciaram na produção literária do livro?
RB — Gosto muito do Stephen King e do Dan Brown. Claro que não tenho a menor pretensão de comparar os meus livros a quaisquer obras deles, mas certamente eles influenciaram o meu estilo.
Além de você e Ayn Rand [autora conhecida no meio libertário], há outros romancistas libertários?
RB — Confesso que desconheço, mas apostaria que sim. De Rand, li apenas Cântico e A Revolta de Atlas. Sobre este último, apesar de não ser o meu estilo preferido, recomendo muito pelo seu fantástico enredo.
Ulrich Fersen, o presidente Blythe e outros personagens são inspirados em figuras reais?
RB — Em alguns aspectos, sim. Não apenas em “Satoshi”, mas em todos os meus livros há dezenas de “easter eggs”. Costumo fazer jogos de nomes que relacionam os personagens com pessoas reais. Muitos nomes de personagens quando pesquisados no Google, por exemplo, trarão em seus primeiros resultados as pessoas reais que os inspiraram, ainda que a relação não esteja tão clara à primeira vista. O “Presidente Blythe” é um desses casos.
Como foi a recepção do livro dentro e fora do meio libertário?
RB — Excelente! Apesar de alguns dos principais personagens serem libertários, a defesa que eles fazem dessas ideias ocorre de maneira cadenciada e suave em meio à trama. Mesmo assim, recebi algumas mensagens de leitores que não eram libertários afirmando coisas como “imposto é roubo”, “agora eu vejo que somos apenas vaquinhas de uma fazenda”, “acabei de comprar meus primeiros satoshis [fração comparáveis a “centavos” de Bitcoins]”, e por aí vai.
Você não acha que a abordagem declarada de ideais libertários pode limitar o público leitor a aqueles que já tem afinidade com elas?
RB — Acredito que não. Em primeiro lugar porque, na verdade, eu não exalto o teor libertário do livro quando estou falando para um público não libertário. Depois, porque acredito que a maioria das pessoas não seja libertária, nem antilbertária, nem socialista, nem estatista, e etc, mas simplesmente não possua uma posição ideológica definida. Elas não se incomodariam com o fato de haver personagens libertários no livro. Por fim, é preciso destacar que a trama do livro está muito mais centralizada em criptomoedas, jogos políticos e inteligência artificial do que no libertarianismo em si. As ideais libertárias estão bem presentes, mas não se trata, de forma alguma, de um livro apenas para libertários.
Devemos entender Satoshi como uma metáfora de uma sociedade mais livre e mais descentralizada?
RB — Eu entendo que o Bitcoin, independentemente do seu futuro, seja a prova de que podemos ter uma sociedade mais livre e mais descentralizada.
Quando foi seu primeiro contato com o Bitcoin?
RB — Não me recordo da data exata do meu primeiro contato, mas lembro de ter tido uma péssima primeira impressão. De largada, imaginei que o Bitcoin estaria fadado ao fracasso em razão do problema do gasto duplo e, a partir desse preconceito, simplesmente deixei de pesquisar mais sobre o assunto. Algum tempo depois, em 2016, um amigo me explicou mais detalhes a respeito do Blockchain e passei a entender melhor o Bitcoin. Acredito que muitas pessoas ainda estejam naquele estágio inicial em que eu fiquei, do preconceito, e que a leitura de “Satoshi” possa ser uma boa maneira de levá-las a ultrapassar essa barreira.
Como deve ser a aceitação do Bitcoin e outras criptomoedas no futuro?
RB — Eu não sei qual será o futuro do Bitcoin, mas a minha aposta é de que alguma criptomoeda descentralizada e de emissão limitada, tal qual o Bitcoin — e talvez ele próprio, se tornará o meio de troca mais amplamente aceito em todo o mundo.
As criptomoedas podem vir a ser uma arma popular contra estados ineficientes como na Argentina ou Nigéria em um futuro próximo?
RB — Com certeza! A proteção de indivíduos contra diversos tipos de espoliação e agressão estatal é, na minha opinião, um de seus aspectos mais relevantes.
A popularização e uso do Bitcoin seria o primeiro passo para se atingir uma sociedade libertária?
RB — Eu não tenho a pretensão de saber qual seria o primeiro passo para alcançarmos uma sociedade libertária, mas ousaria dar um palpite: esse passo talvez esteja mais ligado à disseminação de ideias do que a qualquer outra coisa.
Como você teve contato pela primeira vez com as ideias de liberdade?
RB — Desde 2013 participo de um grupo que tem entre os seus objetivos o estudo dos mais diversos temas e, lá, me foi designada a tarefa de produzir um trabalho a respeito do tema “O dinheiro e a liberdade”. Foi realizando pesquisas para este trabalho que me aprofundei pela primeira vez nas ideias de Liberdade.
Por que você acha que o liberalismo e o libertarianismo vêm ganhando mais espaço no debate público, com Hélio Beltrão tendo uma coluna periódica na Folha de São Paulo e o deputado Gilson Marques declarando que “imposto é roubo” no Congresso?
RB — O ganho de espaço do liberalismo e do libertarianismo no debate público é enorme e evidente, e penso que seja decorrente da descentralização das informações que surgiu dos adventos da internet e das redes sociais. Antes, a maior parte da população era alimentada por informações emitidas exclusivamente a partir de um pequeno e concentrado núcleo onde predominavam aqueles artistas e intelectuais mencionados no início da entrevista. Agora, porém, o acesso aos mais diversos tipos de informação é muito fácil para quase todo mundo. É verdade que há muita informação ruim circulando, mas as boas ideias não estão mais escondidas e, cedo ou tarde, estão chegando até as pessoas.
O Brasil está preparado para ser livre?
RB — Penso que a defesa da Liberdade não deva estar condicionada à certeza de que ela funcionaria bem, ou imediatamente bem, para esta ou para aquela sociedade. Mas, para não me desviar tanto da pergunta, posso dizer que acredito que o bom funcionamento da Liberdade exija uma maturidade específica para isso, mas que, por outro lado, o desenvolvimento dessa maturidade exija liberdade. Ou seja: uma sociedade sem liberdade jamais atingirá a maturidade necessária para funcionar bem em liberdade. Penso que a evolução possa e tenda a ser gradual, mas não podemos ficar estagnados pelo medo das dores do amadurecimento.
“Satoshi”
Preço: R$ 14,90 (197 páginas)
Autor: Rafael Boskovic