Por Anderson Denardin

O Brasil tem sua história econômica marcada por uma longa trajetória de desajustes fiscais que foram apontados como uma das principais causas dos mais profundos e devastadores desequilíbrios macroeconômicos já experimentados, os quais foram decisivos para garantir duas décadas de estagnação e atraso para a economia, na medida em que contribuíram para alimentar um processo hiperinflacionário esquizofrênico e descontrolado.

Ao longo dos anos 80 e em parte da década de 90, a economia brasileira conviveu com um processo inflacionário sem precedentes que produziram significativos estragos na economia. Porém, após o fracasso de vários planos de estabilização, o Plano Real, ousou ao conseguir dizimar rapidamente o processo hiperinflacionários, e restabelecendo com grande êxito e sucesso a estabilidade de preços na economia

A inflação além de ocultar as profundas distorções no âmbito da administração pública, encobria a péssima gestão dos administradores e o mau uso dos recursos públicos. Esse cenário servia como pano de fundo para justificar a completa ausência de planejamento no processo orçamentário.

A estabilização monetária contribuiu para tornar evidente uma condição latente de graves e recorrentes desequilíbrios das contas públicas em todos os níveis de governo (Federal, Estadual e Municipal). Uma vez identificado o problema, e percebida a gravidade que representava, sendo apontado como a causa e a conseqüência de um circulo vicioso que produzia as principais mazelas enfrentadas pela economia, despertou-se a importância de se produzir um profundo ajuste fiscal para consolidar o processo de estabilidade monetária, e garantir a retomada da capacidade de planejamento de longo prazo, e a retomada do processo de crescimento econômico sustentável.

Foi nesse cenário que surgiu a necessidade de se desenvolver mecanismos institucionais para disciplinar a gestão dos recursos públicos colocados a disposição do governo pela sociedade, e garantir um equilíbrio fiscal permanente para restabelecer a ordem econômica.

Com o firme propósito de perseguir o equilíbrio fiscal e fortalecer a responsabilidade dos agentes públicos com a disciplina financeira e com a eficiência no uso dos recursos públicos, profundas reformas estruturais forma levadas a cabo.

Dentre elas, destaca-se a Lei Complementar n.º 101, de 04.05.2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O principal objetivo dessa lei é definido logo no seu art. 1º, o qual procura constituir “normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”. Considerada elemento fundamental na imposição de disciplina fiscal em todos os níveis de governo e em suas três esferas de poder, a lei procura introduzir os elementos fundamentais necessários para garantir uma boa gestão financeira das contas públicas. Enquanto a Lei Nº. 4.320/64 procura estabelecer as diretrizes gerais de preparação e execução orçamentárias, a LRF concentra o foco na gestão fiscal com ênfase na consolidação e manutenção da estabilidade macroeconômica.

A Lei de Responsabilidade Fiscal representa um marco na história da gestão nas finanças públicas brasileira, dado que significa o ponto de partida de uma sucessão de iniciativas que foram sendo implementadas com vistas a dar suporte a um ajuste fiscal consistente de longo prazo.

Muito longe de representar apenas mais uma lei a fazer parte da caótica e combalida estrutura legal brasileira, ela veio para contribuir com o propósito de reorganizar a economia do país e introduzir um caráter de eficiência, seriedade e comprometimento com a transparência e com a ética, há muito aclamada pela sociedade brasileira. A partir dessa lei, todos os agentes públicos passam a assumir um comprometimento com o orçamento e com metas, que devem ser rigorosamente definidas, apresentadas e aprovadas pelo respectivo Poder Legislativo.

Algumas medidas estruturais de suma importância introduzidas logo após a implementação do Plano Real pavimentaram o caminho para a aprovação de uma proposta mais abrangente que assumiu uma forma concreta e definitiva com a aprovação LRF, destacando-se: os acordos de refinanciamento de dívidas entre a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e os estados e municípios, bem como, a legislação introduzindo limites para despesas de pessoal em todos os níveis de governo.

A LRF veio fortalecer o arcabouço legal do planejamento de longo prazo, estabelecendo um conjunto de medidas, que procuram impor um maior rigor com a disciplina fiscal que se pretende, procurando introduzir a cultura de um adequado planejamento das ações do governo e o comprometimento com a execução responsável do orçamento público. Tais mudanças passaram a exigir uma maior capacidade de monitoramento por parte do governo Federal e do Poder Legislativo para averiguar o efetivo cumprimento das normas estabelecidas. Com esse propósito, o governo federal tem dedicado esforços significativos para viabilizar o controle, tanto por parte da Secretaria do Tesouro Nacional, como por parte dos Tribunais de Contas (Poder Legislativo), para fiscalização da aplicação da Lei por parte dos entes Federativos, procurando garantir mais transparência nas informações através da disponibilização de relatórios, informações orçamentárias e indicadores fiscais.

Trata-se de uma verdadeira revolução nas práticas até então consolidadas no país, tendo que passar a ter de se submeter aos rígidos controles que passa a determinar a fixação de limites para despesas com pessoal, para evolução da dívida pública e a determinação de que sejam elaboradas metas para um rígido controle de receitas e despesas públicas com vistas a respeitar um regime de metas fiscais.

Em tais circunstâncias, a disciplina fiscal impõe a condição de que, para cada despesa criada, os gestores do erário público precisam prever uma nova fonte de receita que compense o gasto. Assim sendo, limita os agentes públicos a aumentar as despesas com salário dos funcionários, criação de cargos públicos, endividamento público, renúncia de receita, dentre outras, somente mediante expressa previsão orçamentária, para a compensação do prejuízo causado. Tais compensações poderão ser efetivadas por meio de novos impostos, por aumento de arrecadação e combate à sonegação, desde que assegure o devido respeito no trato com a coisa pública.

Além de um grande avanço no sentido de promover o saneamento eficaz das finanças da União, dos Estados e dos Municípios, a proposta da LRF é de consolidar um ajuste fiscal permanente, indispensável para garantir uma estabilidade monetária definitiva, com vistas a assegurar um crescimento econômico sustentável, a geração e distribuição justa de renda e uma melhoria persistente no nível de bem-estar da sociedade.

Após ter passado por um longo período de desajustes, marcado por uma completa orgia fiscal e pela mais absoluta irresponsabilidade com o trado do erário público, produzindo uma profunda desordem e comprometendo o desempenho da economia por cerca de duas décadas (anos 1980 e parte do 1990), quase levando o país à bancarrota, estava mais do que na hora de promover uma profunda revolução no âmbito da administração das finanças do setor público brasileiro. Assim sendo, uma profusão de reformas implementas na esteira da LRF contribuíram para produzir uma completa transformação na realidade fiscal brasileira.

É importante considerar que a fatura pelos elevados custos incorridos por conta dos ajustes fiscais produzidos pela LRF que, em valores atualizados superam a marca dos R$ 800 bilhões, foi assumida indiretamente pelos contribuintes por meio do Tesouro Nacional, o qual absorveu para si os gigantescos rombos deixados nos caixas de bancos públicos, estados e municípios por governantes ímprobos, e socializou o prejuízo entre os pagadores de impostos.

Pode-se dizer que, após um sacrifício descomunal, e atravessar um período de significativas transformações e ajustes, o Brasil começou a ensaiar uma recuperação de sua dignidade, restabelecendo a ordem e as condições ideais para recuperar o respeito, a consideração e a confiança de seu povo e dos povos estrangeiros.

O país parecia estar no rumo certo, implementando as reformas adequadas, estabilizando as condições financeiras, consolidado a estabilidade monetária, recuperando a confiança dos investidores em sua economia, ou seja, resgatando as condições necessárias para garantir um crescimento sólido e sustentável.

Porém, tudo parecia ir muito bem quando, repentinamente, as circunstâncias mudaram e as práticas de gestão pública responsáveis, transparentes, e eficazes que vinham sendo adotadas com relativo sucesso, desde a aprovação da LRF, sofreram um abrupto ponto de inflexão.

Nos últimos anos temos acompanhado uma profunda transformação no que diz respeito ao padrão da gestão pública no Brasil e, diga-se de passagem, mudanças para muito pior. No que tange a política fiscal o atual governo optou pela mais completa e absoluta indisciplina, elevando os gastos de forma exagerada e irresponsável, abrindo mão de receitas, restabelecendo práticas excessivamente intervencionistas e utilizando truques contábeis por vias de uma “contabilidade criativa” para maquiar os balanços, na tentativa de encobrir desequilíbrios financeiros crescentes.

Também, recentemente, tem exercido forte pressão no congresso para que as regras estabelecidas pela LRF fossem flexibilizadas, com o propósito de ampliar a capacidade de endividamento de Estados e Municípios, contrariando os desígnio originais que incitaram a criação da própria Lei.

Diante desse comportamento inadequado por parte do governo na condução da política econômica, e da evidente falta de comprometimento com a gestão dos recursos públicos e seu aparente descaso com a disciplina fiscal, a economia tem experimentado uma constante deterioração em seus fundamentos, e tem sido fortemente penalizada pela crescente perda de confiança em sua trajetória.

Alguns indicadores evidenciam a trajetória de franca deterioração seguida pela economia brasileira recentemente, consolidadas no aprofundamento dos desequilíbrios fiscais, no aumento do endividamento público, na piora das contas externas, na crescente perda de confiança, refletidas na exigência de prêmios de riscos crescentes e na instabilidade na taxa de câmbio, tudo isso, recheada com a mais abominável de todas elas que são os sinais de retomada da inflação combinadas com a estagnação da atividade produtiva. A gestão aparentemente desordeira e esquizofrênica do atual governo está comprometendo seriamente o desempenho da economia e colocando todas as conquistas, até então garantidas com muito sacrifício e com sucesso, em condições de crescente ameaça.

Se, em algum momento, os compromissos com a disciplina fiscal e os efeitos positivos por ela produzidos representaram uma condição fundamental, demonstrando ser decisivos para garantir a recuperação da confiança, o sucesso do programa de estabilização e a solidez na economia, está mais do que evidente que a falta desses compromissos podem ser determinantes para garantir o retrocesso e o mais absoluto fracasso. Ou seja, estamos prestes a repetir os mesmos equívocos do passado, e comprometer uma década de árduos sacrifícios e de significativas conquistas para a economia, colocando tudo a perder, causando enormes prejuízos para o País e para o “contribuinte” que é quem vai ter que pagar mais essa conta.

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Anderson Denardin é Doutor em Economia Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e escreve todos os domingos para o site do Clube Farroupilha.

As informações, alegações e opiniões emitidas no site do Clube Farroupilha vinculam-se tão somente a seus autores.

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