A chamada “Ocupação da Gare”, em Santa Maria – RS, provoca, há anos, considerável debate acerca de sua legitimidade. De um lado, perfilam-se os defensores do estado e de “suas” terras; de outro, estão os defensores do direito legítimo da ocupação por parte das famílias que lá agora residem.

Argumentos diversos são arrolados por ambas as partes. A realidade é que a questão se torna particularmente turva pelo difícil acesso a informações precisas e indispensáveis para o desenvolvimento de quaisquer argumentos, sejam eles favoráveis ou contrários à Ocupação. Por isso, o desenvolvimento do argumento ora apresentado poderia sofrer substanciais alterações no caso de as fontes aqui utilizadas serem documentalmente contestadas. Não sendo o caso até o momento, consideremos a matéria elucidativa (embora não definitiva) da Revista o Viés, que aponta para o fato de que “a área ocupada pertencia anteriormente à rede ferroviária [estatal], que a cedeu à Prefeitura em troca do perdão de dívidas que possuía.” [1] Para os aliados do estado, esse fato justificaria, per se, o pedido de reintegração de posse por parte do município. São os homens da lei, que, silenciosos, estão apenas cumprindo seu honrado dever de executar a letra fria da lei.

Um segundo argumento lançado pelos defensores dos tentáculos estatais é o de que a área da Ocupação seria uma “área verde”, não podendo ser, portanto, ocupada por qualquer um que não seja o próprio estado, esse “guarda noturno” de áreas de preservação ambiental. Uma “área verde”, na definição completamente desprovida de sentido sancionada pelo estado, seria um espaço que somente poderia ser destinado à alocação de parques ou praças arborizadas, ou, enfim, à alocação de qualquer espaço que mantenha o predomínio da vegetação local. Mas o é que isso significa exatamente? Ora, uma “área verde”, em verdade, pode ser qualquer área não ocupada previamente – pouco importando, para isso, se se trata de “mata nativa-endêmica”, de “mata qualquer” ou de qualquer outro tipo de vegetação. Definições como essa não passam de “nobres” justificativas para que o estado possa arrogar para si áreas desocupadas, terras virgens, e, assim, dificultar o acesso à terra de potenciais apropriadores originais – inclusive, famílias que não possuem uma porção de terra para si próprias. Mesmo considerando que essa suposta “área verde” possa ter algum efeito de legitimidade, o próprio status de tal área é questionado pelo advogado dos moradores, Ricardo Jobim.[2]

Uma das vias de acesso à Ocupação da Gare: apropriação legítima dos moradores é alvo dos tentáculos estatais. Foto: SEVERO, Felipe. 2013.
Uma das vias de acesso à Ocupação da Gare: apropriação legítima dos moradores é alvo dos tentáculos estatais. Foto: SEVERO, Felipe. 2013.

Uma das vias de acesso à Ocupação da Gare: apropriação legítima dos moradores é alvo dos tentáculos estatais. Foto: SEVERO, Felipe. 2013.

A questão que coloco é se, de alguma forma, a “Ocupação da Gare” poderia ser considerada legítima a partir de uma perspectiva libertária. A fim de fornecer uma resposta coerente, três tópicos serão aqui desenvolvidos:

  1. O conceito, brevemente apresentado, do princípio de apropriação original (homesteading) e se ele poderia ser invocado na defesa da Ocupação;
  2. A legitimidade da Ocupação, sendo/fosse sua área, com efeito, uma terra estatal;
  3. Esboço dos efeitos prejudiciais da política estatal-apartidária sobre a Ocupação da Gare.
  1. Princípio bastante assimilado pelos libertários, o princípio da apropriação original (homesteading), consiste, basicamente, na ideia de que “todos os recursos, todos os bens, em um estado de ausência de posse, pertencem devidamente à primeira pessoa que os encontrar e os transformar em um bem útil.” [3]Acredito que, para libertários, o conceito não se constitui exatamente como um problema, mas o que causa divergência são, naturalmente, as nuanças, as interpretações e as aplicações práticas do princípio. Uma citação mais, de Rothbard, pode contribuir para clarificar o princípio de apropriação original:

“Mas uma extensão territorial qualquer que é dada pela natureza talvez jamais tenha sido usada ou transformada; e, portanto, qualquer título de propriedade existente da terra-jamais-usada teria que ser considerado inválido.  Pois nós vimos que o título de um recurso sem dono (como a terra) é propriamente obtido somente através do dispêndio do trabalho de transformar este recurso por meio do uso.  Portanto, se uma terra qualquer nunca foi transformada assim, ninguém pode reivindicar legitimamente sua posse.” [4]

A partir disso, podemos concluir, basicamente, que, se a “área verde”, supostamente da Prefeitura, era uma área virgem antes da Ocupação, ela não era/é da Prefeitura porque ela afirma que era/é sua. Ela só pode ser considerada propriedade legítima daqueles que a transformaram em um bem útil – no caso da Ocupação, dos moradores que transformaram porções de toda a extensão territorial da área em suas próprias moradias.

  1. Mas suponhamos que essa área não fosse virgem e que a Prefeitura ou a rede ferroviária estatal a transformaram de algum modo. Será que, ainda assim, o princípio de apropriação original poderia tornar legítimas as propriedades dos moradores da Ocupação? Recorremos novamente a Rothbard:

Há um argumento crítico do estado que ora vem à tona: a saber, o argumento implícito de que o aparato estatal, justamente e de fato, possui a extensão territorial sobre a qual ele reivindica jurisdição.  O estado, em resumo, arroga para si próprio um monopólio da força, do poder de tomada suprema de decisões, sobre uma determinada extensão territorial – maior ou menor dependendo das condições históricas e do quanto se conseguiu conquistar de outros estados.  Se é possível dizer que o estado possui justamente o seu território, então é justo que ele estabeleça as regras para todos que ousarem viver nesta área.  Ele pode se apoderar ou controlar legitimamente as propriedades privadas porque não existe propriedade privada nessa área, porque ele na realidade possui toda a superfície territorial.  Conquanto que o estado permita que seus súditos saiam de seu território, então se pode dizer que ele age como qualquer outro dono que registre regras para as pessoas viverem em sua propriedade.  (essa parece ser a única justificativa para, por exemplo, o slogan cruel, ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, bem como para a enorme ênfase geralmente dada ao direito de um indivíduo emigrar de um país)[5]. Resumindo, essa teoria faz do estado, assim como do Rei na Idade Média, um senhor feudal, que, ao menos teoricamente, possuía toda a terra em seu domínio.  O fato de os recursos novos e nunca usados – sejam eles terras virgens ou lagos – serem invariavelmente declarados como pertencentes ao estado (seu ‘domínio público’) é uma manifestação desta teoria implícita.

Mas nossa teoria da apropriação original (homesteading), descrita anteriormente, é suficiente para demolir qualquer uma dessas pretensões do aparato estatal.  Pois por qual direito concebível os criminosos do estado reivindicam a propriedade de sua extensão territorial?  Já é ruim o bastante eles terem se apoderado do controle supremo da tomada de decisão; que critério pode possivelmente dar a eles a legítima posse de todo o território?” [6]

Convém salientar que Rothbard denomina o estado e seus agentes de “criminosos”, porque o estado (a) adquire seus rendimentos através de coerção física (impostos); (b) alcança um monopólio compulsório da força e do poder de tomada de decisões finais em uma determinada extensão territorial. Se assim o é, conclui-se que, por ser uma organização criminosa com todos os seus ativos derivados do crime do imposto, o estado não pode possuir nenhuma propriedade justa. Isso significa que apropriar-se de terras estatais, como o fazem os moradores da Ocupação, não poderia, em hipótese alguma, ser considerada um “roubo”; por corolário, as terras ocupadas não poderiam, em hipótese alguma, ser consideradas ilegítimas e passíveis de ações estatais pela reintegração de posse.

Um último argumento engendrado por detratores da Ocupação é de que a terra estatal é de “domínio público”, devendo ser destinada ao chamado “Parque dos Ferroviários”, em benefício de todos os moradores do município e em cumprimento a um suposto “direito ao meio ambiente” invocado pelo Ministério Público Estadual.[7] Não passa de argumento inócuo. Mas, aqui, também pecam aqueles que dizem que o “direito à moradia” deve sobressair-se em relação ao “direito ao meio ambiente”. A questão é que um “direito” não pode ser formulado a partir da violação do “direito” de outrem. Se alguém possui o “direito à moradia”, isso implica, necessariamente, que alguém deve arcar com esse “direito”, um ato positivo que leva à coerção de outro indivíduo, ferindo seus verdadeiros direitos, isto é, de não ser coagido, a menos, é claro, que esse indivíduo tenha coagido outro indivíduo inicialmente. Esse é um aspecto negligenciado pela maioria das pessoas, que não compreende o risco corolário na imposição de uma obrigação a alguém para satisfazer um suposto direito alheio. Se essa lógica fosse levada à última instância, a escravidão poderia ser considerada legítima quando empregada na satisfação de um determinado “direito positivo”, o que, certamente, não é desejável.

Portanto, a única obrigação legal (isso, enfatizo, não significa ser a única obrigação moral) que um ser humano deveria ter para com outro é respeitar os direitos desse outro ser humano, quais sejam, os de não ter violadas sua autopropriedade e suas propriedades de bens tangíveis justamente adquiridas. A legitimidade da Ocupação da Gare deve-se, pois, ao princípio de apropriação original, não a um suposto “direito à moradia” conferido a esses cidadãos.

  1. Salutar recordar da insistente reafirmação da mão pesada do estado sobre os moradores da Ocupação. Quanto a isso, partidos rivais não rivalizam: a primeira ação pela reintegração de posse ocorreu durante a gestão Valdeci, do PT, enquanto a gestão Schirmer, do PMDB, deu prosseguimento às ilegítimas ações estatais de reintegração de posse.[8] Observem que não se trata de “estadistas” cientes de seus elevados propósitos morais como homens públicos em contraposição a homens malvados que se apropriam indevidamente da máquina estatal: quando a defesa das propriedades adquiridas injustamente pelo estado torna-se imperativa, não importa a cor da sigla de quem está no comando do Leviatã.

As consequências do joguete político, para os moradores, são profundamente deletérias. Os moradores da Ocupação, por exemplo, não possuem acesso à rede de energia elétrica da empresa abastecedora do município, a AES Sul, e sequer têm um Código de Endereçamento Postal (CEP).[9] Evidentemente, essa aura de ilegitimidade imposta pelo estado influencia negativamente, inclusive, o modo como a população externa à Ocupação encara os moradores. Em uma triste ironia, legítimos detentores de propriedade são tratados como “bandidos”, como se o estado não fosse o próprio criminoso. A bem da verdade, é que os moradores da Ocupação estão fazendo mais do que simplesmente apropriando-se de terras que poderiam ser consideradas devolutas: eles estão enfrentando e resistindo ao aparato estatal que esmaga impiedosamente os indivíduos. Como sempre, são precisamente aqueles que querem e precisam livrar-se das garras estatais que pelo estado são agarrados e agredidos.

[1] SEVERO, Felipe; GIRARD, Bibiano. O que realmente está acontecendo na Ocupação da Gare? Revista o Viés, Santa Maria, 1º mar. 2013. Disponível em: <www.revistaovies.com/reportagens/2013/03/o-que-realmente-esta-acontecendo-na-ocupacao-da-gare/>. Acesso em 24 jul. 2015.

[2] Ibid.

[3] ROTHBARD, Murray N. A Ética da Liberdade. 2. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 117.

[4] Ibid., p. 124.

[5] Esse trecho da citação lembra os famosos bordões ‘Vai Para Miami’ ou, inversamente, ‘Vai Para Cuba’.

[6] Ibid., p. 243.

[7] SEVERO, Felipe; GIRARD, Bibiano, op. citat.

[8] Ibid.

[9] GIRARD, Bibiano; COLL, Liana. Área nobre não é lugar de ocupação. Revista o Viés, Santa Maria, 03 out. 2011. Disponível em: <http://www.revistaovies.com/reportagens/2011/10/area-nobre-nao-e-lugar-de-ocupacao/>. Acesso em: 24 jul. 2015.

Autor: Dario Trevisan de Almeida Filho

Postagens Relacionadas

Comments are closed.