Em tempos de pandemia o que mais nos preocupa é o colapso do nosso sistema de saúde, com superlotação de nossas UTIs e aumento generalizado de mortes. Mas, como chegamos a isso? Como pode um país de dimensões continentais – como muitos adoram ecoar aos quatro cantos – conseguir chegar ao caos de não ter leitos suficientes para seus cidadãos?  

O Brasil tem 45.848 leitos de UTI, sendo 22.844 do Sistema Único de Saúde (SUS) e 23.004 que fazem parte do sistema de saúde privado.1 Lembrando que somos aproximadamente 210 milhões de habitantes. “Um país de dimensões continentais!” 

A média recomendada pela OMS é que se tenha entre 1 a 3 leitos de UTI a cada 10 mil habitantes, o Brasil está na média, com 2,2 leitos para cada 10 mil habitantes, aparentemente satisfatório. Mas quando a análise é mais detalhada, segmentando os dados entre sistema público e privado, por exemplo, o SUS tem média de 1,4 leitos para cada 10 mil habitantes, contra 4,9 da rede privada.2 

Agora, apesar desses números assustarem já em condições normais de vida, quem dirá em plena pandemia, a cada 10 mil pessoas, apenas 2 terão um leito de UTI para se tratar. Isso só não é mais caótico do que a evolução de leitos nos últimos anos no Brasil, em 2016 a nossa média era de 2,03 leitos para cada 10 mil habitantes. Ou seja, não evoluímos quase nada, muito por causa da crise econômica, vamos colocar mais essa na conta dela.3 

Essa introdução sobre a questão dos leitos de UTI no Brasil e o colapso do SUS durante a pandemia é algo muito grave e que até podemos tentar encontrar uma solução ou um culpado para tudo isso. Mas a questão a ser debatida, pelo menos no presente artigo, é: como chegamos a isso?  

Como podemos ter um Sistema de Saúde tão precário e ao mesmo tempo defendidos por tantos? Será cegueira coletiva ou nós é que somos “capitalistas malvadões” que queremos entregar tudo à iniciativa privada? 

Para tentarmos chegar a uma análise sobre a saúde do Brasil como um todo e descobrirmos porque o nosso SUS colapsa mesmo estando na média da OMS, que cá entre nós é uma média ridícula, pois enquanto houver pessoas saudáveis funciona, mas no primeiro surto lota os leitos, precisamos voltar aos primórdios da Saúde no Brasil, como implementamos nosso sistema único e porque cada vez mais o sistema de saúde suplementar é deteriorado.  

OS TIPOS DE SISTEMAS DE SAÚDE NO MUNDO

Para entendermos o nosso sistema de saúde e porque ele foi o escolhido, precisamos entender quais são os sistemas de saúde usados no mundo e como eles funcionam, são eles: o sistema de medicina socializada, o sistema misto e o sistema de livre mercado. 

Vamos falar sobre os três antes de entrarmos em nosso sistema, para podermos entender o motivo de termos escolhido um sistema único de saúde e quais poderiam ser os caminhos alternativos.  

A medicina socializada  

O sistema socializado de medicina parte geralmente da premissa de que saúde é um direito que deve ser fornecido pelo estado, um exemplo desse sistema socializado é o abordado neste artigo, o nosso SUS. 

A característica comum desse sistema é o estado ser o fornecedor da saúde, dono de hospitais, clínicas, ambulâncias e empregador dos profissionais que trabalham na área de saúde (desde o limpador de chão até o neurocirurgião). 

O financiamento desse sistema pode se dar basicamente de duas formas:

• Contribuição igualitária individual, em que cada pessoa paga um valor fixo para o estado por ano, e o governo aloca os recursos conforme achar necessário. Seria algo similar a um plano de saúde estatal.  

• Pagamento por meio de impostos, sendo mais ou menos progressivos conforme o país. Esses impostos podem estar sobre a renda, o consumo ou a propriedade. Sendo essa a forma de financiamento do SUS.4 

Sendo assim, aquele papo de que os ricos pagam para os pobres não é real, na verdade é o pobre saudável que paga para o rico doente, uma vez que os custos são divididos por toda a sociedade. 

O sistema misto

Nesse modelo de sistema há uma alta carga de regulamentações e o fornecimento de serviços pode ser tanto pelo estado quanto por agentes privados. 

Diferentemente do modelo puramente socializado, nos sistemas mistos o estado não é o dono dos hospitais nem o empregador dos profissionais de saúde. Entretanto, o estado atua definindo quais serviços podem ser ofertados, quais tipos de profissionais são autorizados a trabalhar no país e muitas vezes até tabela os preços considerados aceitáveis.5 A saúde continua sendo um direito, mas não cabe ao estado o seu fornecimento. 

Esse sistema apresenta vantagens em relação ao sistema socializado: menores custos dos serviços; competição entre os fornecedores; maior possibilidade de inovações; 

O sistema de livre mercado

Nesse sistema a saúde, como qualquer outro bem ou serviço é ofertado sem a mínima interferência do estado, consiste em as pessoas fazerem as escolhas para seus tratamentos da forma que mais se adequa a elas.  

Esse tipo de sistema está parcialmente presente nos serviços privados de saúde, principalmente naqueles de caráter estético, como cirurgia plástica e dermatologia; cirurgia para correção de miopia; serviços odontológicos; e treinamento físico; mas não é adotado amplamente por nenhum país. 7 

Esses três tipos de modelos podem coexistir, no Brasil temos o SUS e também um setor suplementar, seria um misto de sistema socializado com o sistema misto. Nos EUA, temos um setor totalmente livre bem fortalecido, apesar das últimas investidas em programas sociais de saúde dos últimos governos. 

Cada país, com suas peculiaridades, irá escolher o modelo que melhor se adequa. Por exemplo, a Suécia, com uma população pequena, consegue implementar um modelo socializado que demorará anos para começar a fadigar. Já o SUS, aqui no Brasil, é problemático desde sua implantação.  

Falando em implantação do SUS no Brasil, agora que já sabemos sobre os tipos de sistemas de saúde possíveis, vamos falar sobre a Saúde em nosso país e como e porque  ela é tão problemática e precária – considerando que você ache ela precária e não seja  da turma do “defenda o sus”. 

O COMEÇO DO ACESSO À SAÚDE NO BRASIL

Em termos de prestação de saúde pública, até a década de 1930 o predomínio no Brasil era de entidades filantrópicas. Desde então até a década de 1990 o mercado privado de saúde crescia demasiadamente devido a pouca regulamentação e pela alta demanda que não conseguia ser atendida pelo serviço público. 

Isso mudou com a ascensão do intervencionismo no setor na década de 1990, inicialmente com a Lei nº 8.078/1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor. Ela introduziu uma nova forma de dirigismo contratual, mitigando o pacta sunt servanda. Posteriormente, com a promulgação da Lei nº. 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos e Seguros de Saúde, o grau de intervenção foi endossado e os eventos médicos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde, regulamentados. 8 

A partir daí passamos a ter uma queda constante no número de planos privados de saúde, nos anos 1990 tínhamos mais de 3.000 operadoras e com a criação da lei 9.656/1998, o grau de intervencionismo aumentou consideravelmente, fazendo com que hoje tenhamos menos de 1.000. 

SITUAÇÃO NOS DIAS ATUAIS – diminuição da oferta e alta regulação. Operadoras com beneficiários (Brasil – 2010-2020) 

Fontes: Cadastro de Operadoras/ANS/MS e Sistema de Informações de Beneficiários SIB/ANS/MS Dados atualizados até 07/2020.9

A lei 9.656/98 traz em seu art. 10 o chamado “plano referência” que seria o mínimo que deveria ser ofertado pelas operadoras de saúde:

(…) Art.10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: (grifo meu). 10

O art. 12 referido no dispositivo acima traz as exigências mínimas de cobertura que deve ter o plano, caso inclua alguns tipos de atendimento, conforme veremos a seguir:

(…) Art.12.São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: 

I – quando incluir atendimento ambulatorial: 

a) cobertura de consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina; 

b) cobertura de serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais, solicitados pelo médico assistente; 

c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes; 

II – quando incluir internação hospitalar:

a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos; 

b) cobertura de internações hospitalares em centro de terapia intensiva, ou similar, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, a critério do médico assistente; 

c) cobertura de despesas referentes a honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação; 

d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

e)cobertura de toda e qualquer taxa, incluindo materiais utilizados, assim como da remoção do paciente, comprovadamente necessária, para outro estabelecimento hospitalar, dentro dos limites de abrangência geográfica previstos no contrato, em território brasileiro; e 

f) cobertura de despesas de acompanhante, no caso de pacientes menores de dezoito anos; 

g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar; 

III – quando incluir atendimento obstétrico:

a) cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto; 

b) inscrição assegurada ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, como dependente, isento do cumprimento dos períodos de carência, desde que a inscrição ocorra no prazo máximo de trinta dias do nascimento ou da adoção; 

IV – quando incluir atendimento odontológico:

a) cobertura de consultas e exames auxiliares ou complementares, solicitados pelo odontólogo assistente; 

b) cobertura de procedimentos preventivos, de dentística e endodontia;

c) cobertura de cirurgias orais menores, assim consideradas as realizadas em ambiente ambulatorial e sem anestesia geral;

V – quando fixar períodos de carência:

a) prazo máximo de trezentos dias para partos a termo;

b) prazo máximo de cento e oitenta dias para os demais casos;

c) prazo máximo de vinte e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência; 

VI – reembolso, em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o §1o do art. 1o desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada;

VII – inscrição de filho adotivo, menor de doze anos de idade, aproveitando os períodos de carência já cumpridos pelo consumidor adotante. 

(…) 11 

Com tantas exigências, com tanta regulamentação, fica mais do que óbvio que as agências prestadoras irão se preocupar em cumprir uma vasta legislação de exigências e não em satisfazer os usuários, assim a chamada “soberania do consumidor” se perde e com ela a qualidade e a especificidade dos produtos, uma vez que para cumprir todos esses requisitos é praticamente impossível fazer planos individualizados, com diferentes tipos de assistência. 

Assim, fica evidente o alto custo de um plano privado de saúde em nosso país, tendo de cumprir todos os requisitos acima, as agências têm um alto custo de funcionamento e isso reflete no preço dos planos, afastando a população de menor renda, sobrecarregando nosso SUS e causando uma quebra generalizada dessas prestadoras de serviço. 

Para “fechar o caixão” da saúde privada no Brasil, foi criada, através da Lei 9.961/2000 a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que tem entre as suas competências, autorizar os reajustes dos planos privados de saúde. 

Art. 4º Compete à ANS: 

(…) 

XVII – autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda; 

(…) 12 

CONCLUSÃO

O grande problema da Saúde no país é a alta regulação, em vez de incentivar o avanço da saúde privada no país para suprimir a infinita demanda do SUS, o governo cria regulações que causam quebras no setor. Em vez de incentivar com que tenhamos mais planos individualizados para cada pessoa, com suas peculiaridades, o governo cria regulação com exigências mínimas para serem cobertas pelos planos. 

Assim, criamos o problema da classe média ter que escolher: pagar R$170,00 em um plano de saúde e quase nunca usar ou não ter um plano e usar o SUS quando precisar?  

O quão essa resposta seria diferente se tivéssemos vários tipos de planos, de diversos preços e com coberturas específicas para cada indivíduos?

Mas, em vez de incentivar isso, o Estado, querendo garantir a eterna ilusão do “bem-estar social” faz com que o setor fique fadado a quebrar e preços altíssimos nos planos, consequentemente levando essa classe, que é maioria no país, a congestionar o SUS e seguimos tendo pobres saudáveis pagando para ricos doentes. 

Notas:

1 AMIB.AMIB apresenta dados atualizados sobre leitos de UTI no Brasil. 2020. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.

2 Idem.

3 AMIB. CENSO AMIB 2016. 2016. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2018/marco/19/Analise_de_Dados_UTI_Final.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021

4 LEITE, Davi Lyra. Um breve manual sobre os sistemas de saúde: e por que é impossível ter um sus sem fila de espera. e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera. 2015. Disponível em: https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=2029. Acesso em: 26 abr. 2021.

5 Idem.

6 LEITE, Davi Lyra. Um breve manual sobre os sistemas de saúde: e por que é impossível ter um sus sem fila de espera. e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera. 2015. Disponível em: https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=2029. Acesso em: 26 abr. 2021.

7 Idem

8 SPERANDIO, Luan. Consequências do Intervencionismo no Mercado de Saúde Suplementar Brasileiro. Mises: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, São Paulo, v. , n. 1, p. 125-136, jun. 2017

9 SPERANDIO, Luan. Consequências do Intervencionismo no Mercado de Saúde Suplementar Brasileiro. Mises: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, São Paulo, v. , n. 1, p. 125-136, jun. 2017

10 BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Lei dos Planos de Saúde. Brasilia

11 BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Lei dos Planos de Saúde. Brasilia.

12 BRASIL. Lei nº 9.9.61, de 28 de janeiro de 2000. Agência Nacional de Saúde Suplementar – Ans. Brasilia.








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