Há quem pegue um livro de Orwell na mão em pleno século XXI e diga com voz atônita, “é  um profeta”. Discordo em parte. A verdade é que muito do que hoje ocorre é apenas uma  extensão burlesca da própria época de Orwell. No final, não mudamos tanto assim em meio  século. O escritor inglês de fato acertou muita coisa e, embora eu discorde de sua condição de  futurólogo, não se pode negar que muitos leram 1984 ou Animal Farm não como um aviso,  mas um manual! Apenas algumas páginas tiveram de ser reescritas para soarem menos  explícitas, por assim dizer.

Há outro escritor distópico (para não dizer apocalíptico) que prefiro ao autor de 1984. Ray  Bradbury e sua obra é um daqueles escritores que sempre aparece quando se fala de distopias – ao lado de Admirável Mundo Novo e Laranja Mecânica – muitas vezes, é citado com uma  menção rápida de quem o faz por obrigação. Fahrenheit 451 é de uma verossimilhança  assustadora – e por isso mesmo, muitas vezes deixado de lado. Não pretendo dar spoilers, mas  para resumo: na distopia de Bradbury os livros são proibidos e imediatamente queimados e  reduzidos a cinzas pelos bombeiros, que nesta realidade, são os incendiários. Por qual motivo queimam os livros? Além do controle de informação por parte do governo, evitar que as  minorias da sociedade se sintam ofendidas e as pessoas se entristeçam.

Em uma passagem do livro (em que liberdade e ficção parecem se tornar uma), é explicado  ao bombeiro Guy Montag, o protagonista, como esta perseguição teve início: “A coisa não veio  do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de  partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha,  graças a Deus.” 

O livro foi escrito anos antes do termo politicamente correto, esse palavrão, escorregar pela  língua dos intelectuais e começar a amordaçar as liberdades de expressão. Bradbury anos mais  tarde em entrevista à Playboy, em 1996, viria a afirmar que ele havia previsto o politicamente  correto 43 anos antes. Uma previsão de dar inveja a Orwell! 

Em uma sessão especial ao fim da obra, chamado de CODA, Bradbury não se censura e nem  usa meias-palavras ao explicar as causas: 

O sentido é óbvio. Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo  está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. Cada minoria, seja ela batista,  unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular,  acha que tem à vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender  o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura insossa,  como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima  de jardim de infância. 

Diferente dos nazistas, dos extremistas religiosos e dos comunistas, os inquisidores modernos  descobriram que não é necessário fogo para queimar uma obra. Para iniciar esta fogueira  são necessários apenas dois ingredientes: uma palavra inflamável e uma urbe (ou minoria) de  ofendidos com fósforos à mão. Por fim, basta mudar as palavras (seria a nova fala orwelliana?):  ao invés de “censurar” ou “incinerar” alguém na fogueira da ideologia que tal apenas cancelá- la? Por um bem maior, claro! 

A liberdade de expressão é um fenômeno muito recente na história do homem, para não dizer  inédito. Alguns grupos quererem tomar posse da linguagem, ditar o que pode ser dito ou não,  não passa de uma natureza humana, demasiada humana. Ao longo das eras, a censura não  poderia ser classificada senão como um grande espetáculo, como relembra o historiador  Johan Huinziga no livro Outono da Idade Média. As grandes fogueiras da inquisição são  comparadas a um programa de domingo para levar os filhos. A verdade vil e quase canibal é  que gostamos de apontar o dedo rígido e silenciar quem não gostamos.

Com o início da pós-modernidade, conseguiu-se extrair um pingo de virtude nisso. Em linhas  gerais, as intenções podem ser no fundo boas: acabar com o preconceito e com uma violência  simbólica. Mas todos sabemos que reduzir nossa linguagem a um amontoado de eufemismos – chamar uma favela de comunidade (como manda a cartilha politicamente correta), por  exemplo – e mudar os significantes, ou as palavras usadas para referenciar a algo, não fará  diferença alguma na estrutura do referente, ou o objeto real no mundo, para usar termos saussurianos1. Mas o que não quer dizer que precisemos ser rudes ao escolher certas palavras. 

O códex de termos politicamente incorretos no português já é enorme: denegrir, judiar,  criado mudo, cor-de-pele, ou a pressão por usar construções inexistentes nem nossa língua, os  chamados pronomes neutros… Basta uma pisada em falso em qualquer uma dessas palavras  para invalidar um argumento (às vezes, uma carreira inteira).

Nos EUA, a polícia da virtude e dos bons sentimentos persegue ativamente qualquer um ao menor sinal de preconceito (imaginário ou real). Na faculdade de teatro de Nova Iorque, uma  professora foi alvo de um abaixo-assinado clamando sua cabeça por ela ser racista. Seu pecado?  Cochilar por um breve momento em uma reunião online sobre justiças raciais2

Já a autora mundialmente conhecida JK Rowling também foi posta na fogueira dos bons  costumes. Se no passado seria por suas histórias com temáticas mágicas e heréticas, no  hodierno foi por expressar uma opinião: a autora acredita que o sexo biológico é algo real,  não uma lapidação imposta pela sociedade. Sua sentença: transfóbica. 

No Brasil a caça às bruxas não corre muito diferente. Leandro Narloch (acusado de  revisionismo e homofobia), a produtora de filmes Brasil Paralelo (extremistas políticos e  olavistas) e o jornalista William Waack (racismo) – este último antes mesmo da cultura do  cancelamento existir com esse nome – são apenas alguns exemplos dos réus deste tribunal. 

Mais estranho ainda é que nem os mortos puderam se salvar da cruzada politicamente correta.  Monteiro Lobato, Winston Churchill e Cristóvão Colombo, foram ressuscitados e postos  diretamente na cátedra de réus nestes tribunais da moral – sem direito à defesa! Eles tiveram  trechos censurados, parágrafos apagados e estátuas reduzidas a pedregulhos. No caso de  Lobato, o autor foi acusado de racismo, o que o crítico e estudioso literário João Luís  Ceccantini veio a definir como um analfabetismo histórico3. Mas como previa Bradbury, é  muito mais fácil apagar alguns parágrafos e varrer a “sujeira” para fora dos livros. Já Churchill,  o homem que combateu o fascismo, foi acusado de ser fascista em praça pública – literalmente4. Será que hoje estes grupos teriam coragem de cancelar Machado de Assis, apesar  de ser negro e suas finas críticas à escravidão, ao descobrir que ele era conservador5

Os movimentos querem passar a borracha no passado ao invés de interpretar as figuras como  produtos de suas épocas. Mas vamos admitir: é muito mais fácil proibir alguns termos e  queimar meia dúzia de obras que educar, interpretar e debater com o que se discorda. Em  termos de liberdade de expressão, os resultados são tirânicos: uma imprensa acovardada com  o que fala, não sabendo qual será a palavra-feia da vez ou a sobre quem se pode falar sem ser  automaticamente incinerado. Nas esferas públicas de debate, como universidades, há o medo  de linchamentos (físicos e sentimentais) e uma perseguição truculenta. Para resumir em uma  frase: fale agora ou cancele-se para sempre! 

Em termos literários e de opinião, sou um anarquista convicto! Não contemplo outro  caminho para se construir qualquer coisa se não o diálogo. Clichê, mas é verdade – como já diria Nelson Rodrigues, o óbvio deve ser repetido à exaustão. E se o repito, é porque há quem  queira silenciar os outros. Heinrich Heine, um escritor romântico alemão queimado no  grande expurgo nazista, disse que onde se começava por queimar livros, terminava-se queimando pessoas – Heine não estava vivo para ver seus escritos arderem na fogueira, e mais  tarde, os homens em grandes fornos.

Que grande passo civilizatório alcançamos: conseguimos não só queimar livros e pessoas,  como também opiniões e palavras, sem levar ninguém para uma fogueira literal ou para a  guilhotina. Hoje se queima e se corta cabeças sem dor. Uma completa inquisição a frio! Quero  dizer, ao menos por agora, enquanto não baixamos a guarda e mantemos acesa nossa eterna vigilância… 

1Ferdinand Saussure, considerado o pai da linguística.

 2 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53537542 . Acesso em: 03/05/2021

3 Disponível em: https://veja.abril.com.br/educacao/censurar-monteiro-lobato-e-analfabetismo historico/

4 Disponível em: https://www.causaoperaria.org.br/churchill-era-tao-fascista-e-genocida-quanto-hitler/ 5 Disponível em: https://homoliteratus.com/escritores-de-direita-escritores-de-esquerda/




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