Em 04 de fevereiro de 1970, no norte da Ucrânia, foi fundada a cidade Pripiat, às margens do rio de mesmo nome. O objetivo era abrigar as famílias dos trabalhadores da usina de Chernobyl. Em 1986, ano do acidente, a cidade tinha quase 50 mil habitantes.
Motivo de debate, o número de mortes diretamente provocadas pela tragédia ainda é incerto. No entanto, segundo a ONU, o evento afetou mais de 3,5 milhões de pessoas, matando dezenas de pessoas. Em razão da radiação, mais de 5.000 pessoas tiveram câncer de tireoide – a maioria foi tratada e curada.
Criada por Craig Mazin, Chernobyl é uma das mais aclamadas produções televisivas de 2019.
O acidente nuclear, causado tanto por falhas no design do reator quanto pela imperícia dos engenheiros na realização do procedimento, é fato mundialmente conhecido. No entanto, poucas pessoas conhecem os detalhes do evento.
Ciente dos elementos de captura da atenção do espectador, o esforço por uma representação objetiva dos detalhes alcança a perspectiva psicológica das pessoas reais que deram identidade aos personagens ficcionais, favorecendo a identificação pessoal com as personagens.
Ao longo de cinco episódios, a história é contada por mais de cem personagens com falas, através de múltiplas perspectivas: da mulher que testemunha a explosão da janela de seu quarto, dos cientistas que buscam compreender as causas do acidentes e dos políticos, que despertaram de seu sono em Moscou.
Favorecendo-se da necessidade humana de busca pela verdade e da proximidade histórica com a tragédia, com rigorosa descrição histórica da tragédia, a produção da HBO explora os eventos relacionados ao maior acidente nuclear do mundo. Ao final, há a apresentação dos julgamentos relacionados ao caso. Evidentemente, adaptações próprias das narrativas ficcionais foram feitas no roteiro. Afinal, a minissérie não é um documentário.
Na noite de 26 de abril de 1986, um teste de segurança, simulando uma queda de energia, provocou a explosão do reator 4 da usina nuclear de Chernobyl. O fogo rapidamente atingiu o moderador de grafite, provocando a liberação de grandes quantidades de radiação. As partículas atravessaram as instalações da usina pela fumaça do incêndio.
O alarme de incêndio apenas foi acionado minutos depois, o que inviabilizou melhores resultados na contenção.
Em seu início, a série apresenta Valery Legasov (Jared Harris), integrante da equipe enviada a Chernobyl. O cientista e vice-diretor do Instituto Kurchatov de Energia Atômica suicidou-se em 1988, na data em que se completavam dois anos do desastre. No dia seguinte, ele anunciaria as conclusões de sua investigação sobre o acidente. O título do primeiro episódio faz referência ao momento exato em que o reator explodiu: 1:23:45.
Em sua primeira cena, ele aparece finalizando a gravação de fitas em que denunciava a pressão política que teria sofrido para deixar de fora de seu relatório informações fundamentais sobre acidentes anteriores e falhas de projeto do reator da usina. Em suma, elas revelam o grande esquema de abafamento promovido pela União Soviética e também contam a verdade sobre Chernobyl. Esses registros foram feitos pouco antes do suicídio.
Após desligar o gravador, Legasov age para que os materiais sejam resgatados sem a interceptação do agente da KGB, estacionado do lado de fora do seu apartamento.
Tudo isso é verdade. Legasov morreu exatamente 2 anos após o desastre de Chernobyl. Para o podcast sobre Chernobyl, Mazin afirmou que “ele [Legasov] realmente deixou fitas, mas não com linguagem tão floreada”. Como exemplo, o criador menciona a inexistência nas fitas da fala:
Qual o custo das mentiras? Não é que as confundamos com a verdade. O real perigo é ouvirmos tantas mentiras que sejamos incapazes de reconhecer a verdade. O que poderemos fazer então?
De acordo com Breus, ex-operador na usina de Chernobyl, em entrevista à BBC ucraniana, a série capta com grande precisão o clima e as emoções poderosas nos momentos que se seguiram à explosão. “A catástrofe é descrita de uma forma bastante poderosa, como uma tragédia global que afetou um grande número de pessoas”.
Logo após a morte de Legasov, o espectador é levado ao momento exato da tragédia. Na sala de controle, todas as pessoas mostradas na sala são reais e todos aqueles que buscaram conter a explosão morreram alguns dias depois.
Chernobyl se mostra integralmente comprometida com os relatos históricos. Dos diretores aos funcionários, praticamente todas as personagens presentes na explosão são inspiradas em pessoas reais. Prova disso é a utilização de trechos de diálogos reais expostos em “Vozes de Chernobyl”, livro de Svetlana Alexievich.
O ponto central é a tentativa de compreender o que realmente estava acontecendo. A maioria dos envolvidos ainda acreditava que o núcleo do reator 4 estava intacto. Dentre eles, alguns eram responsáveis pelo controle da situação, como Nikolai Fomin e Viktor Bryukhanov.
Engenheiro-chefe da usina, Nikolai Fomin (Adrian Rawlins) ordenou que Anatoly Sitnikov fosse ao telhado da usina para analisar o estado do reator, consciente de que sua decisão poderia condenar o funcionário à morte. De fato, Sitnikov não sobreviveu.
A destruição do reator, constatada por Sitnikov, foi contestada pelo diretor da usina, Viktor Bryukhanov (Con O’Neill).
Eles foram considerados responsáveis pela demora na análise do que realmente havia ocorrido na usina. Um ano após o acidente, eles foram expulsos do partido comunista e condenados a 10 anos de prisão. Antes da prisão, Nikolai tentou suicídio. Viktor também foi condenado a cinco anos por abuso de poder. De um total de 15 anos de condenação, ele foi liberado após cumprimento de cinco anos de pena.
O engenheiro supervisor do teste que teve como consequência o desastre de Chernobyl foi Anatoly Diatlov (Paul Ritter). Julgado e condenado a dez anos de prisão por “manipulação criminosa de instalações potencialmente explosivas”, ficou efetivamente preso por cinco anos. Após a saída da prisão, ele escreveu um livro relatando que uma falha de projeto, e não humana, teria sido a causa principal do acidente. Em 1995, faleceu em razão de complicações cardíacas.
Breus critica o modo como Chernobyl apresenta o diretor da usina, Viktor Bryukhanov, o engenheiro-chefe, Nikolai Fomin, e o engenheiro-chefe adjunto, Anatoly Dyatlov. Segundo ele, “seus personagens são distorcidos e deturpados, como se fossem vilões. Eles não eram nem um pouco assim”.
Após constatar que houve uma explosão, Breus conta que ficou surpreso por ter sido levado ao local da explosão. “O reator parecia tão danificado que não havia o que ser feito”, disse ele.
Essa declaração de Breus corrobora com a informação, divulgada pelo The Chernobyl Podcast, de que um funcionário, ao perceber que o reator havia explodido, voltou para a casa, dormiu e, depois, retornou ao trabalho com a certeza de que em breve morreria.
Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård) é um alto funcionário do governo soviético destacado para supervisionar a operação para lidar com o acidente. Morreu 4 anos após o desastre.
Em seu voo para Chernobyl, ele já ameaça um arremesso do helicóptero. “É fictício, mas bem justo com as descrições dele, de gostar de intimidar, gritar. Era um cara durão, o sujeito certo para cuidar do assunto”, disse Mazin.
Em análise publicada pelo The New Yorker, a jornalista Masha Gessen expõe a deturpada e abrangente confrontação entre sujeitos de diferentes cargos em Chernobyl. Segundo ela, “de maneira geral, soviéticos seguiam ordens sem serem ameaçados por armas ou punições”. Assim, as ameaças de fuzilamento proferidas por Shcherbina e o modo como Legasov é ameaçado de ser jogado do helicóptero por Shcherbina também são exageradas. Isso seria comum na era de Josef Stalin, mas não sob Mikhail Gorbachev.
Após a explosão, os bombeiros foram os primeiros a chegarem à usina. No entanto, eles desconheciam o que verdadeiramente havia acontecido. Em um primeiro momento, acreditaram que era só um incêndio no telhado. Diferentemente da série, vários testemunham que os bombeiros não tiveram de escalar os destroços. Breus aponta que o incêndio no telhado não passa de um mito. De fato, tiveram inúmeros focos de incêndio, mas não no telhado. De modo algum isso tornou o trabalho dos bombeiros menos letal. Estima-se que 31 pessoas morreram nas duas semanas posteriores ao desastre – em sua maioria, os bombeiros.
Vasily Ignatenko foi retratado como o bombeiro que responde aos primeiros alarmes. Ele representa todos os primeiros socorristas afetados pela explosão. A missão desempenhada por eles era praticamente impossível: eles tentavam canalizar a água até o reator danificado. Segundo Breus, porém, “o fluxo de água que os bombeiros despejaram provavelmente evaporou antes mesmo de chegar ao reator.”
Referindo-se aos primeiros bombeiros que chegaram à usina, Legasov explica para Scherbina sobre os efeitos da radiação no corpo humano. Além de assustadora, a informação está cientificamente correta: aqueles que foram expostos a altos níveis de radiação se recuperam por um pequeno período de tempo, que é sucedido por violento processo de danificação dos tecidos.
Os horríveis efeitos nos corpos das vítimas que sofreram com a síndrome aguda da radiação são devastadores, como se vê na série. A exposição detalhada foi elogiada por Breus. “Muitas pessoas falaram sobre exposição à radiação, pele vermelha, queimaduras de radiação e queimaduras de vapor, mas nunca haviam sido mostradas assim.”
Logo após o incidente, o ex-operador falou com duas pessoas que também aparecem na série: o colega Leonid Toptunov e o líder do turno, Oleksandr Akimov. “Eles estavam claramente doentes, muito pálidos. Toptunov estava literalmente branco”. Ambos os homens morreram em um hospital de Moscou com síndrome de radiação aguda.
“De manhã, vi outros colegas que trabalharam naquela noite. A pele deles tinha uma cor vermelha brilhante. Mais tarde, eles morreriam em um hospital em Moscou”, relembra Breus.
A crença de que a cidade de Pripyat foi imediatamente evacuada após a explosão em Chernobyl é compartilhada por muitos. Porém, isso não passa de ilusão.
Após a confirmação do acidente, Dyatlov precisava informar a seus superiores. De acordo com Mazin, depois de inúmeros telefonemas ao longo da noite, as informações eventualmente chegaram a Mkhail Gorbachev (David Dencik), então líder da União Soviética. Uma reunião foi convocada.
Em um momento simbólico, Zharkov (Donald Sumpter), antigo membro do Comitê, declara:
Isolamos a cidade. Ninguém sai. Cortamos as linhas telefônicas. Vamos conter a disseminação da desinformação. É assim que impedimos o povo de prejudicar os frutos de seu próprio trabalho. Sim, camaradas. Todos seremos recompensados pelo que fizermos aqui esta noite. Este é nosso momento de brilhar.
Na reunião, que realmente aconteceu, decidiu-se pela minimização da gravidade do acidente e manutenção da população sem acesso às informações. De fato, não se sabe em pormenores o que efetivamente foi conversado nessa ocasião, mas não é mistério que o desastre de Chernobyl e a falha em deixá-lo em segredo foram fatores determinantes para que fossem implementadas as políticas que, eventualmente, levaram à dissolução da União Soviética.
Em declaração real, Mikhail Gorbachev explicitou o abafamento:
Nas primeiras horas e até mesmo no dia seguinte ao acidente, não se sabia que o reator havia explodido e que havia acontecido uma enorme emissão de material nuclear na atmosfera.
Zharkov e seu discurso são produtos da ficção. Para Mazin,
Servem para mostrar o pensamento que havia na União Soviética. Tudo era rotulado como alarmismo, que eram as ‘fake news’ soviéticas. ‘Eu não quero acreditar no que você diz, então vou colocar na categoria de erro filosófico’.
A minissérie retrata o que de fato ocorreu: o governo soviético decidiu colocar a cidade em quarentena. Inúmeras pessoas foram recrutadas para auxiliarem imediatamente na limpeza da usina. Essas pessoas ficaram conhecidas como “liquidatários civis”.
O aprisionamento da população pelo governo produz cenas assustadoras, cujo gatilho é a inocência pela ignorância: das pessoas se banhando na chuva ou com as janelas abertas em suas casas ao vento soprando na vegetação.
A população só começou a ser evacuada 36 horas após o desastre. Naquele momento, os cidadãos ucranianos acreditavam que a evacuação seria apenas temporária e que, em breve, retornariam às suas casas.
No entanto, quando o espectador se apropria da história através de Lyudmilla Ignatenko (Jesse Buckley), a esposa de um dos bombeiros que atendeu à explosão, a carga emocional provoca mais impacto.
Ela representa o núcleo civil da produção, apresentando como a população da região sofreu os efeitos do acidente. Submergindo em ansiedade e insegurança, os familiares do primeiro grupo que foi conter o incêndio tiveram de lidar com a falta de informações sobre a real gravidade do ocorrido.
Alguns aspectos da história de Lyudmilla foram modificados. Na série, ela mantém contato físico com seu marido. Na vida real, os médicos impediram que ela se aproximasse do marido.
Há um detalhe real no funeral de Vasily: ele teve de ser enterrado descalço, pois seus pés estavam inchados demais. É por isso que Lyudmilla aparece segurando um par de sapatos na cena final do episódio.
Distanciando-se dos governantes e dos diretores regionais, houve uma aproximação do público com o evento. O emprego do ponto de vista de cidadãos “comuns” é uma poderosa ferramenta no processo de criação laços de empatia, e não apenas de observação imparcial.
As autoridades ficaram preocupadas com a possibilidade da “lava”, formada pela explosão, derreter o solo do reator e contaminar os corpos fluviais. Legasov explica que o desastre seria inimaginável para grande parte da Europa Oriental.
Para impedir essa tragédia, era necessário mergulhar nas galerias inundadas sob o reator danificado e abrir uma válvula para drenar a água. Vista por muito tempo como suicida, a operação foi devidamente executada. Três trabalhadores entraram no porão de Chernobyl e esvaziaram manualmente os perigosos resíduos: Alexei Ananeko, Valeri Bezpalov e Boris Baranov.
Na série, eles aparecem com equipamento completo e utilizam tochas de dínamo para iluminarem o caminho. Na realidade, eles não usaram trajes de proteção e contaram apenas com o tato para chegar aos subsolo.
Conta-se que os três morreram como consequência da exposição à radiação. Na verdade, todos sobreviveram: Borys Baranov, líder da operação, morreu em 2005; Valery Bespalov e Oleksiy Ananenko, engenheiros-chefes de uma das seções do reator, estão vivos e moram em Kiev.
Em entrevista à BBC, Ananenko disse que diferentemente do que é mostrado na série, não lhe foi oferecida nenhuma recompensa para encorajá-lo a participar da missão. “Era o nosso trabalho. Se eu não tivesse feito isso, eles poderiam ter me demitido”.
Em uma tentativa de evitar um desastre ainda maior, aproximadamente 400 mineiros foram trazidos para a construção de um túnel. O objetivo era a abertura de um espaço no solo para a instalação de um trocador de calor que impediria o derretimento do núcleo e a consequente contaminação das águas subterrâneas, o que afetaria milhões de pessoas.
Esses trabalhadores estavam protegidos da radiação pelo túnel subterrâneo. Fora dele, estavam expostos. Em razão das temperaturas elevadas no local, eles ficam nus na série.
Seis semanas depois, ocorreu o esfriamento do núcleo derretido sem qualquer intervenção e o nitrogênio líquido, que seria bombeado para o trocador de calor, não foi utilizado.
Em relação à nudez, Breus afirma que “eles [os mineiros] tiraram suas roupas, mas não como foi mostrado na TV”. No entanto, vários registros históricos sustentam a versão de Chernobyl. Estima-se que um em cada quatro morreu devido aos efeitos da radiação.
A limpeza da usina após a explosão foi o tema central do quarto episódio. Foi um momento dramático em torno da tragédia – tanto na ficção como na realidade.
Quando Legasov pede a permissão de Gorbachev para que homens sejam contratados para limparem manualmente na zona nuclear, ele está sutil e essencialmente buscando permissão para matar esses homens.
Intocáveis para suas famílias, em virtude do medo de contaminação, essas pessoas, pela via reflexa, também foram condenadas ao isolamento nos momentos que precederam suas mortes. Foram forçados a morrer sozinhos.
Em 1990, inúmeros detalhes foram revelados por Yuri Semiolenko, o oficial que coordenou o processo. Ele relatou que, na iniciativa, os soviéticos usaram cerca de 60 robôs, número que compreendia máquinas feitas na URSS (inclusive as desenvolvidas para missões espaciais), no Japão e na Alemanha Ocidental (o robô alemão Joker, que aparece na minissérie, ainda está abandonado na região).
As máquinas não aguentaram o nível de radiação, o que forçou os oficiais a recorrerem ao trabalho manual humano. Estatisticamente, apenas 10% do telhado foi limpo por robôs.
Na minissérie, os 5 mil operários que trabalharam na limpeza da usina receberam o apelido de “biorrobôs”. Em razão da radiação, 31 operários morreram ainda em Chernobyl e 237 tiveram casos confirmados de exposição aguda à radiação.
O sacrifício dos trabalhadores soviéticos não teria sido necessário se Estados Unidos e União Soviética tivessem colaborado. Em 1979, em razão do derretimento parcial de um reator da usina nuclear Three Mile Island, na Pensilvânia, os cientistas americanos desenvolveram protótipos de robôs para limpar a usina nuclear[1].
De acordo com reportagem da revista The Scientist, Semiolenko afirmou que “os oficiais que compraram os robôs não entendiam nossa situação. Nós teríamos aceitado de todo o coração robôs americanos”.
De acordo com Adam Higginbotham, jornalista e autor de “Midnight in Chernobyl”, a carreira e a saúde de Legasov estavam arruinadas quando morreu.
Ele [Legasov] não chegou nem a ser reconhecido publicamente por seu trabalho em Chernobyl, pelo menos em parte porque Gorbatchev desenvolveu, logo no começo, uma antipatia pessoal por ele.
Na minissérie, o cientista Valery Legasov foi retratado como um sujeito independente e relativamente questionador.
A construção psicológica da personagem, imbuída de uma pequena dose de rebeldia, apresentada como a limitação de sua lealdade ao sistema, é algo que não ocorreu na realidade. Os relatos históricos indicam que o cientista era decididamente leal ao partido e ao regime.
Em parte, essa rebeldia é parcialmente atribuída pelo espectador, já que ele representa os olhos e os ouvidos do público. Ou seja, ele foi um instrumento encontrado por Mazin para introduzir o espectador no núcleo mais burocrático.
Ele é o que Chernobyl tem de mais próximo de um protagonista. No entanto, para os homens e mulheres cujas mortes ele sancionou, como ele poderia ser algo além de um vilão?
Em 1996, oito anos após sua morte, Valery Legasov foi condecorado com o título de “Herói da Federação Russa” pelo então presidente Boris Yeltsin.
A explosão do reator espalhou nuvens radioativas sobre o hemisfério norte, da Checoslováquia ao Japão, liberando o equivalente a 500 bombas atômicas na atmosfera, considerando-se a lançada em Hiroshima. Nas horas seguintes à explosão, a extensão do acidente ainda não era totalmente conhecida.
O historiador Serhii Plokhii afirma que, logo após o acidente, o Partido Comunista da União Soviética buscou controlar a circulação das informações com o objetivo de criar sua própria versão dos fatos. Para isso, o governo bloqueou as redes de telefonia e proibiu que os engenheiros e funcionários da usina nuclear compartilhassem informações com seus amigos e familiares sobre o que aconteceu. Sem expor a dimensão dos riscos a que todos estavam sujeitos, divulgou notícias informando que o nível de radiação não era alarmante, que a situação estava sob controle ou que os efeitos imediatos poderiam ser contidos.
Às 5h da manhã, Mikhail Gorbachev, último líder da URSS, foi informado de que havia ocorrido uma explosão na usina nuclear de Chernobyl.
No livro “Chernobyl: the History of a Nuclear Catastrophe”, o historiador ucraniano Serhii Plokhii explica que, naquele momento, ele não viu necessidade de alertar outros líderes políticos ou interromper seu fim de semana para realizar uma reunião de emergência. Ele criou uma comissão do governo, comandada por Boris Shcherbina, vice-presidente do conselho de ministros.
Até então, apesar do perigo, nenhuma autoridade ordenou a evacuação dos cidadãos.
A questão é que não era a primeira vez que a URSS enfrentava uma situação assim. Em setembro de 1957, ocorreu um desastre nuclear de menores proporções nos Montes Urais. No entanto, não havia nenhuma informação sobre o desastre de Kyshtym. “Manter o silêncio era um protocolo padrão na URSS”, segundo Plokhii.
Segundo Higginbotham, tendo em vista que o acidente em Kyshty foi escondido com sucesso pelos soviéticos, o governo decidiu adotar o mesmo procedimento. A primeira aproximação de helicóptero, cerca de 24 horas após a explosão, mostrou a magnitude da catástrofe.
“Quando eles desembarcaram, ainda não estavam prontos para aceitar o que havia ocorrido”, diz o Plokhii. Em suas memórias, Shcherbina escreveu que teve de se forçar para assimilar o que seus olhos viam.
“No começo, eles estavam em estado de choque e negação, não queriam aceitar o que havia acontecido, não queriam se responsabilizar pelo que aconteceu”, diz Plokhii, que é também diretor do Instituto Ucraniano de Pesquisa da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Em seu livro, Plokhii escreve que “à medida que os níveis de radiação aumentavam, as autoridades ficavam cada vez mais nervosas, mas não tinham o poder de decidir pela evacuação”. Em outra passagem, ele menciona que a URSS demorou 18 dias para falar publicamente sobre o acidente na televisão.
Foi a usina sueca, a 1.100 km da usina de Chernobyl, que revelou ao mundo o acidente. O alarme da usina de Forsmark, localizada a uma hora de Estocolmo, soou assim que um dos funcionários chegou para trabalhar. Em razão das condições climáticas, com o vento soprando do sudeste e a ocorrência de chuvas, inúmeras partículas radioativas foram encontradas na vegetação localizada ao redor de Forsmark. Prontamente, foram identificadas como o material usado nas usinas da URSS.
Mesmo com o alerta sobre a detecção emitido pela Suécia, a URSS demorou dois dias para admitir o desastre, segundo Higginbotham. Ele aponta para a “dimensão psicológica” nessa negação inicial. “O evento foi tão catastrófico e a escala do desastre foi tal que nem mesmo especialistas bem treinados, que entendiam exatamente a energia nuclear, conseguiram assimilar o que estavam vendo”.
O contexto da Guerra Fria é essencial para entender como os fatos se desenrolaram, acrescenta Plokhii.
Segundo ele, as investigações sobre as causas da explosão foram iniciadas quase que imediatamente em diferentes órgãos. Os protagonistas dessa atuação coordenada foram a KGB (agência de espionagem soviética) e o escritório do Procurador do Estado.
Por óbvio, o governo soviético não conseguiu controlar a circulação das informações sobre o acidente nem a propagação da radiação. No entanto, ao ignorar o risco de morte ao qual a população estava exposta, o curso de ação do governo se tornou uma das causas que aceleraram o declínio da URSS.
As impressões de Mazin, que visitou o local do desastre, são bastantes semelhantes às de Svetlana, quando foi pela primeira vez a Chernobyl, quatro meses depois da tragédia.
Ali eu logo entendi que estávamos em outro mundo. Tudo parecia igual, as maçãs, os pepinos, o leite, mas pairava a sombra da morte. E as pessoas estavam desorientadas, perdidas, não em um plano anticomunista ou antissoviético, e sim em algo superior, algo distinto. Porque não se trata do ser humano na história, mas do ser humano no cosmo. Voltei a ver a mesma coisa vários anos depois em Fukushima (a central nuclear japonesa afetada por um acidente em 2011). Também ali havia a mesma desorientação nas pessoas, nos cientistas e nos políticos, a mesma sensação de impotência.
Em entrevista à VEJA, Craig Mazin, criador da minissérie Chernobyl, afirma que o desastre em Chernobyl teve uma causa bem específica. “Para mim, a razão de tudo ter acontecido foram as constantes mentiras da União Soviética”. Segundo ele, vivemos agora “um aumento na disseminação de mentiras no mundo todo, o que é aterrorizante”.
Para o criador de Chernobyl, relembrar esse evento tem grande relevância, servindo como um alerta para “uma história sobre o custo, não só em termos de vidas, mas também sob os aspectos moral e ético de ignorarmos a verdade”. Segundo ele,
As pessoas costumam lembrar dos momentos mais espetaculares de um desastre, mas são as pequenas coisas que mais me impressionam. Nosso guia, por exemplo, nos levou a um mercado, e apontava as prateleiras onde a mãe comprava pão e leite. Passamos pelos alojamentos dos funcionários enviados para limpar a área da usina; as botas deles ainda estavam lá. A gente percebe o quanto aquilo afetou as pessoas, o quanto foi real. Queríamos que a série fosse uma espécie de memorial para todas elas.
O criador sustenta que, além de um país fechado ao mundo, o regime político da União Soviética era terrível. Para ele, ainda que o causador imediato da tragédia tenha sido um reator defeituoso, razões mais profundas os levaram a fazer o que fizeram. Tendo em vista a suscetibilidade humana à mentira e à distorção, ele aponta que essas motivações não são estranhas a nós.
Idêntica conclusão é extraída por Breus, que concordou com a representação da URSS na série. Para ele, o regime excessivamente secreto e as más práticas de gestão e comunicação contribuíram ainda mais para a ocorrência do acidente.
“Chernobyl está frequentemente ligado a mudanças estratégicas na União Soviética e aos primórdios da sua abertura política, o princípio de tudo está em Chernobyl”, explica Plokhii.
Na época, as pessoas estavam se informando sobre os fatos por meio da mídia estrangeira e de rumores – alguns corretos e outros não – e não por seu próprio governo.
A mídia estrangeira pressionou a URSS a publicar informações sobre Chernobyl. Por exemplo, o jornal New York Post publicou a informação de que 15 mil pessoas haviam morrido.
“Levou semanas, meses e até mesmo anos até que, gradualmente, a verdade emergisse, em parte porque eles capturaram correspondentes estrangeiros baseados em Moscou e os impediram de sair da cidade e se aproximar da zona do acidente”, segundo Higginbotham.
Para ele, o acidente foi definitivo para a “desintegração da URSS, não só pelo custo econômico ou pela crescente desconfiança das instituições pelos soviéticos, mas também por causa de como isso mudou o próprio Gorbachev”.
Ele acrescenta que “uma cultura que nega evidências científicas e é baseada em mentiras e sigilo não é segura para ninguém”.
Em sua pesquisa sobre o acidente, Plokhii concluiu que “houve realmente uma ligação direta entre Chernobyl e a queda da URSS”. Para ele, “a maneira como a União Soviética entrou em colapso não pode ser realmente entendida sem a história de Chernobyl”.
Com o objetivo de analisar o verdadeiro impacto do acidente, Kate Brown, historiadora da ciência do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, desenvolveu uma extensa pesquisa. Seus estudos deram origem ao livro “Manual de Sobrevivência: Um Guia de Chernobyl para o Futuro”, de sua autoria.
Em busca de dados, ela viajou para os principais países afetados pelo acidente, Ucrânia, Bielorrússia e Rússia. Nessas ocasiões, além de entrevistar sobreviventes, revisou antigos relatórios hospitalares e analisou o conteúdo dos arquivos oficiais.
Em reportagem da BBC, publicada em 10 de agosto de 2019, ela apresentou parte das informações e dados coletados.
Elaborado conforme dados oficiais, o relatório reconhecido internacionalmente define que 31 pessoas morreram como resultado imediato de Chernobyl.
Por sua vez, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 50 mortes podem ser diretamente atribuídas ao desastre. Em 2005, a ONU previa que, eventualmente, aproximadamente 4 mil poderiam ter morrido em virtude da exposição à radiação.
No entanto, a pesquisa da historiadora aponta que o impacto de Chernobyl é maior do que a apresentada na versão oficial.
Nas semanas seguintes ao acidente de Chernobyl, centenas de milhares de trabalhadores foram encaminhados para as áreas localizadas nas adjacências do usina. Eles integraram operações para controlar o fogo nas instalações e para conter o material radioativo que integrava o núcleo explodido.
Essas pessoas foram denominadas como “liquidantes”, a definição oficial soviética para o “participante na liquidação das consequências do acidente da usina nuclear de Chernobyl”. Na prática, a classificação era utilizada para indicar aqueles que necessitariam de cuidados médicos especializados e receberiam indenizações.
Aproximadamente 600 mil pessoas, segundo registros oficiais, foram classificadas como “liquidantes” – em sua maioria, bombeiros, tropas militares, policiais, mineiros, faxineiros, engenheiros e agentes de saúde.
Em polêmico relatório publicado, membros da Academia Russa de Ciências indicam que possivelmente até 830 mil pessoas integraram as equipes de limpeza da usina. Ainda, estimaram que entre 112.000 e 125.000 destes – cerca de 15% – teriam morrido até 2005. Porém, em função de sua validade científica, os números presentes nesse estudo foram contestados por cientistas do Ocidente.
No entanto, as autoridades ucranianas registraram seus cidadãos que foram afetados pelo acidente de Chernobyl. Em 2015, havia 318.988 trabalhadores de limpeza ucranianos no banco de dados, embora, de acordo com um relatório recente do Centro Nacional de Pesquisa Médica de Radiação na Ucrânia (NRCRM), 651.453 trabalhadores de limpeza foram examinados em razão da exposição à radiação entre 2003 e 2007. Em registro semelhante, 99.693 trabalhadores de limpeza foram cadastrados na Bielorrússia. No registro russo, os números apontam 157.086 liquidantes.
Em geral, houve um aumento nas taxas de mortalidade. Na Ucrânia, as taxas de mortalidade entre essas pessoas aumentaram entre 1988 e 2012, passando de 3,5 para 17,5 mortes por mil pessoas.
Além disso, a incapacidade (ou invalidez) entre os liquidantes aumentou consideravelmente: em 1988, 68% deles eram considerados saudáveis. Após 26 anos, apenas 5,5% ainda eram considerados saudáveis.
Aproximadamente 63% deles sofria de doenças cardiovasculares e circulatórias, enquanto 13% tinham problemas com o sistema nervoso.
Na Bielorrússia, até 2008, foram diagnosticados 40.049 liquidantes com câncer. Outros 2.833 foram confirmados na Rússia.
Também entrevistado pela BBC, Viktor Sushko, vice-diretor geral do Centro Nacional de Pesquisa Médica de Radiação, descreve o desastre de Chernobyl como o “maior desastre antropogênico da história da humanidade”.
A organização estima que cerca de 5 milhões de cidadãos da antiga União Soviética, incluindo 3 milhões de ucranianos, tenham sido afetados pelo desastre de Chernobyl. Na Bielorrússia, outras 800 mil pessoas também foram atingidas pela radiação.
Hoje, o governo da Ucrânia é responsável pelo pagamento de pensões a 36.525 viúvas de homens considerados vítimas do acidente de Chernobyl.
Até janeiro de 2018, 1,8 milhão de pessoas, incluindo 377.589 crianças, tinham o status de vítimas do desastre na Ucrânia, de acordo com Sushko. Houve um rápido aumento no número de deficientes entre esta população: em 1995, representava 40.106 pessoas; em 2018, chegou a 107.115.
Porém, desde 2007, a organização relata que o número de vítimas de Chernobyl na Ucrânia diminuiu em 657.988 (queda de 26%). Embora os motivos não sejam totalmente explicáveis, as hipóteses prováveis são a migração (vítimas saíram do país), a reclassificação oficial da condição de vítima e, obviamente, inúmeras mortes.
Os dados apresentados apontam que as taxas de mortalidade em áreas contaminadas por radiação têm crescido progressivamente mais na região do que o resto da Ucrânia. O pico foi em 2007, quando morreram mais de 26 pessoas em cada 1.000. A média nacional é de 16 para cada 1.000.
Cerca de 150.000 km² da Bielorrússia, Rússia e Ucrânia são considerados contaminados. A zona de exclusão, praticamente desabitada, tem 4.000 km² (o dobro do tamanho de Londres). No entanto, a precipitação radioativa, carregada pelos ventos, espalhou-se por grande parte do hemisfério norte.
Dois dias após a explosão, altos níveis de radiação foram detectados na Suécia. Na Grã-Bretanha, a contaminação de plantas e campos provocaram, durante anos, rigorosas restrições à venda de cordeiros e de outros produtos ovinos.
Nas regiões afetadas da Europa ocidental, os indícios apontam taxas maiores de neoplasmas (crescimento anormal de tecido que incluem câncer) em comparação com áreas que escaparam à contaminação.
Pesquisas feitas sobre as pessoas deslocadas de suas casas, com dados médicos, indicam que a mortalidade entre os evacuados tem aumentado gradualmente, atingindo um pico entre 2008 e 2012, com 18 mortes por 1.000 pessoas.
Através da respiração de material radioativo e da ingestão de alimentos contaminados, alguns moradores que residiam nas proximidades da usina receberam doses de radiação em suas glândulas tireoides de até 3.9 Gy, aproximadamente 37 mil vezes a dose de um exame de raio X de tórax.
A pressão política de autoridades soviéticas é a principal hipótese para supressão das informações sobre o problema. Para não macular a imagem do país no âmbito internacional, a União Soviética sacrificou sua população. Após sua queda, as pessoas que viviam em áreas expostas à radiação começaram a se apresentar com uma série de problemas de saúde. Uma imagem muito mais clara do número de mortos pelo desastre está surgindo.
O evento foi uma tragédia comum à Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Cada um desses países reinterpretou sua parcela de horror. Ultimamente, porém, as coisas têm ficado ainda mais complicadas.
Segundo Alexiévich, a Rússia é considerada um país agressor pela Ucrânia. Atualmente abandonada, Pripyat está dentro da zona de exclusão na Ucrânia. Em sentido oposto, o sentimento anti-ucraniano é permanentemente reforçado pelos russos.
Em relação aos bielorrussos, a escritora afirma que “a ditadura teve suas consequências, com a subordinação de todas as instituições relacionadas com Chernobyl”. Em suas palavras “as autoridades [da Bielorrússia] temem o espírito livre da Ucrânia”.
Na Bielorrússia, aponta Alexiévich, a principal preocupação do presidente Alexander Lukashenko (no cargo desde 1994) é “conservar o poder”. Na Rússia, impera uma “política militarista”. Diferentemente, na Ucrânia surge uma “nova consciência” que se reflete no novo presidente, Volodymyr Zelenski. O grande desafio é imposto pelos nacionalistas radicais.
O desapreço da Rússia pela liberdade e independência dos países vizinhos é expressa: Vladimir Putin indicou seu desejo de uma integração mais estreita com a Bielorrússia. Conforme expõe Alexiévich, muitos veem isso como uma futura anexação e uma manobra para poder continuar no poder quando seu mandato terminar, em 2024.
Alexiévich não considera que o estancamento ou o retrocesso político na Rússia e na Bielorrússia sejam um fenômeno somente atribuível à personalidade de seus líderes. Enfática, ela aponta que “não é Putin que manda abrir museus, monumentos e esculturas dedicadas a Stálin. Não são suas ordens. São iniciativas privadas. O Kremlin e o povo se unem”.
Ela menciona a retirada das cruzes de madeira da floresta de Kuropaty, convencida de que a ação foi promovida Lukashenko. No local, os carrascos da NKVD (a polícia política de Stálin) promoveram incontáveis fuzilamentos dos anos trinta ao início dos anos quarenta.
O governo e os setores mais conservadores da população russa não aprovaram o roteiro. Alguns setores consideram que Chernobyl é produto de ardilosas conspirações estrangeiras contra a Rússia atual. Um articulista do jornal “Komsomólskaya Pravda” considera Chernobyl como uma tentativa de desacreditar a Rosatom (a entidade governamental responsável pela energia atômica na Rússia), em benefício de seus competidores ocidentais.
Em resposta, o canal de televisão NTV anunciou a gravação da primeira série russa sobre o acidente. Seus protagonistas serão um espião norte-americano infiltrado na zona da central e um agente do serviço secreto soviético que tenta desmascará-lo.
Em câmera lenta, uma das cenas mais emblemáticas da série se desenvolve sutilmente. Sem o emprego do diálogo, as imagens dão conta de capturar toda a fragilidade da condição humana.
As pessoas, atraídas pela luz azul emitida pelo incêndio no reator, contemplam o evento em uma ponte ferroviária. As cinzas produzidas pelo incêndio, tal como a neve, caem sobre os moradores. Sorrisos são esboçados pelas crianças. Algumas brincam com o pó radioativo que cai do céu.
Os rumores de que todos aqueles que testemunharam os eventos dali morreram como resultado da exposição à radiação são negados pelas autoridades.
Nesses detalhes, Chernobyl esboça como o indivíduo, a sociedade, as organizações e o Estado funcionavam na URSS. A descrição das relações sociais, culturais, políticas e econômicas expõem alguns paradoxos entre o discurso socialista e a realidade soviética. Um deles é a estrutura hierarquizada da sociedade: frequentemente, a base do discurso ideológico se sustenta na defesa de um sistema igualitário, em que a sociedade se confundiria com o próprio Estado.
Preservada através dos registros históricos, a realidade foi exposta na minissérie. Fica evidente a existência de uma estrutura hierárquica em que, o topo da pirâmide, personificado pelos burocratas e políticos do alto escalão da época, exerce controle ilimitado sobre a população.
Durante décadas, o governo da URSS exerceu controle sobre o conteúdo das informações, sustentando-se em um complexo esquema de censura e repressão. A recorrente produção de mentiras era objeto de planejamento e análise prévia. O desastroso evento em Chernobyl alterou profundamente esse esquema.
Incapazes de reconhecerem os erros cometidos no passado, algumas pessoas insistem em aplicar seus esforços naquilo que não lhes permite exercer sua vontade livremente: na realidade histórica. Em grandes proporções, essa incapacidade pode atingir quase todo um povo.
Hoje, dentre tudo aquilo que a Rússia possui, existe algo que seu governo e grande parte de seu povo não têm: o apreço pela liberdade. Diferentemente dos artefatos bélicos, ele é insuscetível de ser fabricado.
Praticamente tudo o que foi produzido na URSS, em nome do socialismo, não passa de um esboço mal acabado. Para aqueles que encontram alguma beleza na moldura teórica que sustenta a noção de superação histórica do capitalismo, essa teoria emoldurou muito mais do que as promessas de igualdade. Inegavelmente, Chernobyl é parte desta imagem.
Ainda que se diga que toda sociedade funciona através de complexos processos de tentativa e erro (o que é indiscutível), a grande diferença aqui é o apego ao erro como verdade. De fato, a estagnação da mentalidade da população reflete sua incapacidade em reconstruir uma nova identidade.
Ao provocar as pessoas a pensarem, confrontando-as com fatos que não sabiam ter acontecido ou que preferiam que não tivessem acontecido, Chernobyl colocou-se além do mero entretenimento. É um verdadeiro experimento artístico que mobilizou a opinião pública e possibilitou uma tomada de consciência sobre a situação política global.
A realidade dos acontecimentos na “ponte da morte” simboliza parte daquilo que aqui se busca combater. Aconteceu ou não? As pessoas morreram ou não? Suposição ou verdade, com os recursos de que dispomos, não há como afirmar com certeza qualquer das duas assertivas.
Segundo Breus, a maioria dos moradores de Pripyat soube do incidente na manhã seguinte à explosão. No entanto, ele afirma ter conhecido pessoas que foram à ponte. Elas apresentaram problemas de saúde após a exposição à radiação, mas sobreviveram. Breus foi tratado, no hospital, “ao lado de um sujeito que pedalou até a ponte na manhã de 26 de abril. Ele foi diagnosticado com um tipo leve de síndrome de radiação aguda”.
Ignorância, dúvidas e controvérsias são parte dos discursos humanos. No entanto, quando a desinformação é culturalmente incentivada, fenômenos que expõem a vida humana ao risco de extermínio se tornam possíveis.
O controle da informação pela censura desconecta a mente humana de sua natureza correlacionada ao mundo dos fatos e abre espaço para que ela, na tentativa de contornar tal violência, produza sua própria versão da realidade. Simultaneamente, ela acredita naquilo que produziu. Essa necessidade humana de compreensão da razão das coisas é suprida pelo que primeiro surge na imaginação. O problema é que o próprio governo atendia a essa demanda.
Como resultado, há uma sociedade escravizada pela cultura de permanente distorção do mundo tal como ele se apresenta. Na era da pós-verdade, existem muitas narrativas em competição. No entanto, esse fenômeno não se relaciona com a divergência de opiniões, em que se discutem diferentes ângulos de um mesmo fato. Ele se relaciona com a negação dos fatos – ou a substituição destes por outros. O objetivo é um só: a construção de um novo mundo, negando a realidade tal como ela é.
Quem possui senso de realidade, como Alexevitch, acaba perplexo. Para ela, as reações agressivas da Rússia e a intensa defesa da extinta URSS são evidências da desconexão das pessoas com o mundo. “Não achava que os processos haviam se congelado de tal forma na Rússia. As reações mostram a mesma maneira de pensar, a mesma agressividade da Guerra Fria”.
Se existe algo na URSS que possa ser elogiado, será a utilização (tardia) do juízo pelos responsáveis pelo julgamento que resultou na condenação dos envolvidos. Indiretamente, o regime reconheceu sua responsabilidade, algo que hoje é objeto de negação pela Rússia. Isso demonstra o engajamento da Rússia em vencer uma suposta luta cujo objeto é a hegemonia de sua própria versão da história.
Com muita lucidez, Mazin constata que ainda hoje existe globalmente uma guerra pela verdade. A vantagem é daqueles que estão no poder: eles transformam suas narrativas em armas contra nós.
É exatamente pela atualidade de suas discussões que Chernobyl consegue ser ainda mais assustadora.
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