Na primeira parte da série que desmente a Teoria da Exploração Internacional, foi tratado sobre como não é do interesse dos cidadãos de países desenvolvidos que os países subdesenvolvidos continuem pobres. Continuando a série, o próximo argumento a ser analisado é o de que o pontapé da revolução industrial – e, portanto, da riqueza dos países desenvolvidos – teria sido o colonialismo sobre o resto do mundo.
Teria ocorrido crescimento econômico na Europa se os europeus não tivessem explorado o resto do mundo?
Para financiar a Revolução Industrial era necessário dinheiro (capital) para ser investido em máquinas, ferramentas e melhores meios de produção. Para muitos historiadores, a acumulação do capital original, aquele que propiciou o começo da industrialização dos países desenvolvidos, se deu por meio do colonialismo e do escravagismo. Ou, falando de uma maneira mais dramática, pelo sangue e suor dos povos africanos, asiáticos, americanos e indígenas, além do saqueio de ouro, prata, açúcar, algodão, tabaco, diamantes, especiarias e demais riquezas do resto do mundo.
Nos séculos XV e XVI, a Europa começou a se lançar ao resto do mundo e ocorreu o início da globalização moderna. Daquele momento em diante, as colônias e intervenções militares ao redor do planeta garantiram o mercado e as matérias-primas necessárias para o desenvolvimento econômico dos países ricos.
Não faltam exemplos para justificar essa tese. Os veios de prata da América Latina fizeram a riqueza do Império Espanhol. O ouro brasileiro era extorquido por Portugal. Por sua vez, por causa das dívidas e importações do Império Português com o Britânico, esse mesmo ouro era transportado para a Inglaterra, servindo para financiar a atividade industrial. O algodão, matéria-prima essencial da indústria têxtil inglesa durante a Revolução Industrial, era proveniente das Antilhas e do trabalho escravo nas plantações do Sul dos Estados Unidos.
Por muitos séculos, a exportação do açúcar de cana foi uma atividade extremamente rentável para as metrópoles possuidoras de colônias no Caribe e na América do Sul. Só que os engenhos de açúcar necessitavam de numerosa mão de obra, e os nativos locais eram insuficientes ou inadequados para o trabalho. A solução foi importar mão de obra escrava da África, não apenas para a cultura de cana, mas também para as demais atividades econômicas.
Tanto a Inglaterra quanto a França, a Holanda e até mesmo os Estados Unidos obtiveram grandes lucros com o tráfico de escravos da África para a América. Os navios europeus partiam do velho mundo para o continente africano transportando artigos como armas, tecidos e rum. Lá, os caciques africanos trocavam essas mercadorias por escravos. Por sua vez, os escravos eram transportados até o Novo Mundo, e os que sobreviviam à jornada passavam a servir como mão de obra para as fazendas e as minas. Em troca dos escravos, os navios recebiam pagamento em dinheiro (ouro e prata), ou eram carregados de produtos tropicais, como algodão, açúcar, tabaco, cacau, couro e peles. Depois, eles voltavam para a Europa, onde vendiam esses produtos. Pela geografia do comércio Europa – África – América, essa rede internacional foi chamada de comércio triangular. Alguns comerciantes britânicos ficaram ricos por causa dele. A Bolsa de Valores de Londres cresceu substancialmente, e Liverpool se transformou no maior porto do mundo.
Enquanto isso, do outro lado do mundo, a Companhia Holandesa e a Companhia Britânica das Índias Orientais acumulavam enorme fortuna no Sudeste Asiático. A riqueza não era proveniente do açúcar, ouro ou escravos, mas sim da exportação de chá, seda, porcelana, café, pimenta, cravo, noz moscada e outras especiarias para a Europa. Em meados do século XVII, a VOC (sigla em holandês para Companhia Holandesa das Índias Orientais) se tornou a maior empresa privada do mundo, com uma quantidade enorme de navios, soldados, funcionários e lucros.
Karl Marx, no capítulo 24 da sua monumental obra O Capital, intitulado “A assim chamada acumulação primitiva”, apontou:
“A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva.” [1]
O uruguaio Eduardo Galeano, famoso crítico do imperialismo e da exploração europeia e norte-americana, escreveu no seu principal livro As Veias Abertas da América Latina:
“A ressurreição da escravatura greco-romana no novo mundo teve propriedades milagrosas: multiplicou as naves, as fábricas, as ferrovias e os bancos de países que não estavam na origem nem (…) no destino dos escravos que cruzavam o Atlântico. Entre os albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários milhões de africanos, não se sabe quantos, atravessaram o oceano (…). Do Potomac ao rio da Prata, os escravos edificaram a casa de seus amos, abriram as matas, cortaram e moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram o cacau, colheram o café e o tabaco, afogaram-se nos socavões mineiros. A quantas Hiroshimas equivaleram seus extermínios sucessivos?” [2]
Mais tarde, no século XIX, os países europeus, com a sua sede de riquezas, aumentaram continuamente os seus impérios coloniais. Todavia, o neocolonialismo não tinha como objetivo primordial converter os “selvagens” ao catolicismo ou entesourar ouro e prata. Dessa vez, o importante era aumentar o comércio internacional, descobrir oportunidades de investimento e explorar a matéria-prima necessária para o desenvolvimento industrial, como ferro, petróleo, borracha e cobre.
Por causa da superioridade tecnológica, militar e industrial, era fácil para as potências europeias abrirem caminho e impor o controle aos povos das terras desconhecidas do interior da África e da Ásia. Para muitos, foi só por causa do colonialismo e da exploração que o Ocidente pôde se desenvolver. É uma ilusão os países pobres acharem que podem ser ricos, pois eles jamais terão a “vantagem” de subjugar e drenar as riquezas de outros povos.
O colonialismo realmente foi indispensável para o desenvolvimento dos países ricos? É uma ilusão a crença de que todas as nações do mundo podem ser ricas? O padrão de vida dos estadunidenses e dos noruegueses só pode ser mantido conquanto a maioria dos indonésios, indianos e congoleses continuem vivendo na miséria?
De certa maneira, é inegável que as colônias ou intervenções militares ao redor do globo tenham servido como fonte de renda para alguns países da Europa Ocidental. Uma parte da industrialização inglesa foi financiada por comerciantes que fizeram fortuna com o tráfico de escravos. Enquanto o exército britânico subjugava populações inteiras, a marinha Real Britânica garantia a segurança dos navios que comercializavam açúcar do Caribe, algodão da América do Norte e especiarias da Índia.
Porém, a exploração internacional não é uma condição indispensável para o desenvolvimento de uma nação. A visão de que a Revolução Industrial não poderia ter ocorrido sem a utilização de recursos acumulados via exploração e escravidão é bastante precipitada.
O primeiro ponto é sobre a extração de ouro e prata. Nos dias de hoje, esses metais tem diversas aplicações na indústria e na química. Mas antes do século XIX, eles serviam apenas como moeda ou no uso de utensílios de luxo, decorações e joias.
Quando os europeus, mais especificamente os portugueses e espanhóis, passaram a extrair ouro e prata das Américas, isso não resultou em quase nenhum benefício para a Europa como um todo. Pois conforme os países ibéricos utilizaram esses metais para pagar suas dívidas* e comprar produtos de outras nações europeias, eles aumentaram a demanda por esses bens importados, além de provocarem um drástico aumento na quantidade de dinheiro em circulação. O crescimento da demanda, sem igual contrapartida da oferta, resultou em altíssima inflação. No século XVI, os preços quadruplicaram na Europa, não coincidentemente ao mesmo tempo em que triplicou a quantidade de ouro e prata no sistema [3].
Ou seja, ao contrário do que o senso comum afirma, as minas de ouro, prata e diamante, seja em Potosí, Ouro Preto ou outras regiões do Novo Mundo, não serviram para beneficiar a economia europeia. Os mercantilistas e metalistas da época pregavam que a riqueza de uma nação era medida pelo seu estoque de metal precioso. Eles estavam errados. Na verdade ela é avaliada, como Adam Smith bem apontou no século XVIII, pela capacidade dos cidadãos de desfrutarem de bens e serviços. E a extração desses minérios não resultou em uma maior quantidade de casas, terras, roupas, objetos ou comida para os europeus. No máximo, serviu para aumentar o número de joias, ornamentos e pratarias constituídas por esses metais.
Os europeus só teriam se beneficiado da maior quantidade de moeda, se a tivessem utilizado para importar bens do resto do mundo, especialmente das Índias Orientais (uma vez que o ouro era o dinheiro universal). Porém, as trocas comerciais com essa região foram relativamente pequenas, não obstante o grande número de civilizações e mercados na Ásia Oriental. Essa situação se manteria até meados do século XIX. Por quê?
O comércio com o continente foi monopolizado pelos portugueses por mais de um século. Quando o monopólio foi quebrado pelos holandeses, todas as suas negociações ficaram concentradas na Companhia Holandesa das Índias Orientais. Posteriormente, cada um dos países que se aventurou a comercializar com a Ásia, também o fizeram por meio de companhias privilegiadas, exclusivas, protegidas e favorecidas pela Coroa. Com todas essas restrições comerciais, o volume de trocas do eixo Euro-asiático, por séculos, foi muito menor do que poderia ter sido. Como declarou Adam Smith:
“… nenhuma grande nação da Europa chegou a ter o benefício de um comércio livre com as Índias Orientais.” [4]
O segundo ponto, e ainda mais importante, é que a economia Britânica não se constituía apenas do comércio colonial. Havia toda uma série de atividades econômicas que não estavam, ao menos diretamente, relacionadas ao colonialismo, e que vinham se desenvolvendo continuamente desde os séculos XVI e XVII.
O setor agrário e extrativista crescia em diversas direções, como o cultivo e venda de cereais, a pecuária, a extração de madeira, ferro, cobre, chumbo, estanho e carvão, a pesca marítima e a exploração e refino de óleo de baleia. O setor manufatureiro também se desenvolvia com ainda mais desenvoltura, o qual incluía atividades como a metalurgia, a marcenaria, a cerâmica, o artesanato, a produção de sabão, papel, vidro, velas, laticínios, lã e linho e as indústrias de tecidos, armas, móveis, relógios e diversos outros utensílios e bens de consumo.
O que quero dizer com tudo isso? Que a maior parte da economia da Inglaterra pré-industrial não dependia das colônias, e era uma economia produtiva, diversificada e rica em relação ao resto do mundo. Lentamente, o capital necessário para financiar a Revolução Industrial ia sendo acumulado.
Ainda que a exploração tenha beneficiado a Inglaterra, a Holanda e a França, chega a ser ingenuidade por parte de Marx, Galeano e outros autores adeptos da Teoria da Exploração creditarem como causa única ou principal do desenvolvimento industrial o colonialismo e a escravidão. Para crer nisso é necessário ignorar completamente todo o contexto cultural (tolerância, liberdade de pensamento e respeito ao lucro), religioso (reforma protestante e a salvação pelo trabalho e frugalidade) e econômico (liberdade de investimento, diversificação econômica e solidez do direito à propriedade) que existia na ilha inglesa.
A análise estatística também não corrobora com a Teoria da Exploração. Para crer que o crescimento da Inglaterra “veio de fora”, é necessário imaginar que os ingleses tivessem uma quantidade enorme de capital fora do país, o que refletiria em lucros obtidos em suas colônias e em empréstimos feitos para outras nações. Porém, no começo do século XVIII, os ingleses detinham uma quantidade igual de ativos e passivos financeiros em relação ao resto do mundo. No ano de 1750, nos primórdios da Revolução Industrial, o capital externo líquido da Inglaterra equivalia a apenas 5% da renda nacional**, contra 414% das terras agrícolas, 124% da moradia e 166% de outros capitais internos (incluindo aí o recente capital industrial). Em 1810, quando a Revolução Industrial já havia sido desencadeada, o capital externo havia crescido para apenas 10%. [5]
É bem verdade que, mais tarde, esse mesmo capital cresceria consideravelmente em relação à renda nacional (39% em 1850, 100% em 1880 e 176% em 1910), em parte por causa do neocolonialismo, e também porque os investidores ingleses decidiram começar a empregar o seu capital no resto do mundo, por meio de empréstimos para estrangeiros, instalação de multinacionais, etc. Porém, a estatística é clara: o capital no estrangeiro só se tornou essencial para a economia inglesa após a Revolução Industrial já ter sido desencadeada. Eles podem ter tornado a economia Britânica ainda mais rica, porém não foram indispensáveis para que ocorresse o crescimento econômico e o desenvolvimento industrial. Se, na metade do século XVIII, os ingleses tinham um capital externo equivalente a 5% da renda nacional, contra 704% de outros capitais, isso implica que de todos os bens dos ingleses (terras, manufaturas, empréstimos, casas, bens de consumo, etc.), apenas 0,7% estavam fora do país.
Certamente existem outros argumentos utilizados para justificar a teoria de que os países pobres só o são porque foram e ainda são explorados pelos mais ricos. Entre eles, os argumentos do imperialismo, do militarismo, da exploração de recursos naturais e da exploração econômica. Esses ficarão para os próximos artigos da série.
*Mesmo sem ouro ou prata, as Coroas Portuguesa e Espanhola teriam que pagar seus empréstimos de qualquer maneira, seja aumentando os impostos ou adiando o pagamento das dívidas. Por isso, é falaciosa a argumentação de que sem o ouro extraído no Brasil pelos portugueses e repassado para a Grã-Bretanha, os ingleses não teriam conseguido financiar a Revolução Industrial.
**Algumas explicações para o leitor menos familiarizado com certos termos econômicos: a renda nacional é a renda de que dispõem os residentes de um país ao longo de um ano, enquanto que o capital nacional é o somatório do valor de todos os seus bens. Por exemplo, se um agricultor tem um terreno avaliado em cem mil reais, e todo ano ele ganha 100 mil reais com suas plantações, o valor do terreno é contabilizado como capital agrícola, enquanto que o seu lucro, como parte da renda nacional. Mas os tratores, as ferramentas e a própria casa do agricultor também se constituem como bens pessoais. Se o somatório do valor de todos os bens é de 500 mil reais, enquanto que a renda anual é de 100 mil, isso significa que o capital do agricultor é cinco vezes maior do que a sua renda. Analogamente, se um banco inglês emprestava mil libras para um devedor português, e ganhava juros anuais de 100 libras, a dívida era parte do capital externo, enquanto que os juros constituíam parte da renda nacional.
Leia os demais artigos da série: Parte I, Parte III, Parte IV.
Autor: Luciano Rolim é um empreendedor e investidor libertário, autodidata e escritor nas horas vagas.
Referências:
[1] – Karl Marx, O Capital, Nova Cultural, 1996, página 370.
[2] – Eduardo Galeano, as Veias Abertas da América Latina, Paz e Terra, 1976, página 91.
[3] – O Livro da Economia, Globo Livros, 2012, página 31.
[4] – Adam Smith, A Mão Invisível, Penguin & Companhia das Letras, 2013, página 51.
[5] – Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, Intrínseca, 2013, página 118.