E ainda havia quem dissesse que a arte sofreu um forte golpe durante a pandemia, essa narrativa se dilacerou completamente com o início do maior ato de dramaturgia da história: a CPI da covid. 

Digo, sem exageros, que é o maior feito da dramaturgia, pois nem grandes teatrólogos, como Shakespeare, tiveram a capacidade de unir tão perfeitamente tragédia e comédia em uma única obra.
Para ilustrar o que coloco leia o excerto da obra abaixo:

(falando sobre a Copa América)

Excelentíssimo Senador Randolfe Rodrigues: – Não pode haver evento de massa!

Excelentíssimo Ministro Marcelo Queiroga: – Todo mundo de máscara e sem público, tem massa onde?

Excelentíssimo Senador Randolfe Rodrigues: – Só jornalista são 3000!

Excelentíssimo Ministro Marcelo Queiroga: – Mas não tem que ter jornalista, tem que ter jogador.

Verdadeiramente, a genialidade cômica e trágica desse trecho supera qualquer “Hamlet” ou “Sonho de Uma Noite de Verão”, pois, ao mesmo tempo que nos faz rir, dói no fundo da alma lembrar que os atores deste drama estão recebendo mais de 30 mil reais de salário para produzir esses diálogos, que ao fim de tudo, no máximo, gerarão um relatório a ser enviado para o Ministério Público. 

Ademais, é maravilhoso e reconfortante saber que nossos governantes, finalmente, entenderam que o único e verdadeiro campo onde o Brasil tem algum potencial é o futebol e começaram a debater esse tema ostensivamente em plenário, contando, inclusive, com riquíssimas discussões, sobre a capacidade técnica de Tite e Renato Gaúcho.

Não me delongarei nos trechos sobre a possibilidade de modificação da bula da cloroquina com a esperança de que isso também mudasse sua ação farmacológica, nem nos trechos em que o Excelentíssimo Senador Federal Renan Calheiros cita a possibilidade encaminhar os fenomenais relatórios da comissão para o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, pois creio que não tenho os conhecimentos de crítica literária necessários para refletir propriamente sobre esses momentos.

Todavia, chamo atenção também para a profundidade filosófica dos debates da CPI, abordando questionamentos que perduram há séculos como “A autonomia do médico e/ou do paciente é superior à ciência?” ou a ainda mais profunda questão “o que é ciência?”. Mais fenomenal ainda é a facilidade e a segurança com que os senadores respondem essas questões para as quais os filósofos até agora não haviam achado respostas.

De fato, Shakespeare teria muito a aprender com a CPI, principalmente em termos de comédia, porém o bardo sabia uma ou duas coisas sobre a natureza humana que nos ajudam a entender, porque essa comissão parlamentar é o que é.

(c) Walker Art Gallery; Supplied by The Public Catalogue Foundation

Em sua série de peças que retratam a Guerra das Rosas, Shakespeare apresenta o personagem Ricardo III, essa figura, nas obras, ilustra perfeitamente um fato já notado por F.A Hayek e economistas da chamada teoria de escolha pública: os piores chegam ao poder. Ao contrário do que geralmente pensamos, não são os mais virtuosos os mais propensos a chegar em cargos de alto escalão, mas sim aqueles mais sem princípios e dispostos a fazer qualquer coisa pelo poder que o alcançarão. Como demonstra o solilóquio abaixo:

Farei meu céu sonhar com a coroa, E viverei um inferno nesta terra Até a cabeça deste tronco torto ‘Star enfiada em coroa de ouro

(…)

Eu sei sorrir, eu sei matar sorrindo Ficar contente com o que me tortura Lavar com falsas lágrimas as faces Mudar meu rosto pra cada momento Afundarei mais barcos que a sereia Matarei mais que o olhar do basilisco Discursarei melhor do que Nestor

(…)

Capaz disso, eu não pego essa coroa? Mesmo mais longe eu ainda a agarrava.

Na peça, e na vida real, Ricardo III conquista a coroa, mas para isso não é possível matar todos em seu caminho, a autopromoção e a manutenção de uma boa imagem é essencial. E é exatamente aí onde está a razão da existência da CPI e da maioria dos outros atos políticos: autopromoção.

Não que não fosse necessário investigar os possíveis crimes cometidos na gestão da pandemia, porém esse nunca será o objetivo de um processo regido por políticos, os quais dependem economicamente da próxima eleição e, portanto, precisam constantemente de um espaço na mídia para mostrar ao povo que estão “trabalhando”.

Enquanto a população continuar sendo encantada pelas “lacradas” e “mitadas” esse será o conteúdo que os burocratas buscarão produzir e a CPI é uma oportunidade de ouro para isso, tanto é que vemos senadores desesperados por uma fala, a qual, obviamente, será depois editada e divulgada nas redes sociais do parlamentar, mesmo que não tenha contribuído em absolutamente nada para o andamento das investigações.

Finalmente, creio que existam duas lições para se tirar dessa loucura toda: 1. Nunca dependa da política, ela é apenas um jogo dos mais inescrupulosos e loucos por poder. 2. Por motivos puramente egoístas, em alguns casos, os burocratas terão de fazer o que encanta as massas, portanto, temos um pouco de culpa pela futilidade de nossos representantes, como já diria Shakespeare “A culpa, meu caro Brutus, não está nas nossas estrelas, mas em nós mesmos”, façamos os ideais de liberdade encantarem as massas, assim, quem sabe um dia, veremos uma CPI dos lockdowns.

Notas

1 https://www.aier.org/article/the-lockdowns-might-be-killing-the-arts/

2 https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/politica/2021/06/queiroga-sobre-a-copa-america-nao-e-um-evento-de-massa.html

 3 Solilóquio de Ricardo III na peça Ricardo II; Ato V, Cena VI; trad Bárbara Heliodora




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