Quase sempre que um liberal defende o fim do caótico sistema de saúde pública e a liberalização desse setor, instantaneamente ele é retrucado com o “argumento dos Estados Unidos”. É um mito popular a ideia de que, nesse país, a saúde é inteiramente privatizada, sem sofrer intervenção do governo. Tal noção é catalisada por notícias bombásticas na mídia, postagens no Facebook e a proposta do candidato Bernie Sanders de uma saúde “gratuita” e universal.
Muitos dos supostos problemas da saúde dos EUA são inverídicos. Por exemplo, é comum a ideia de que mais de 40 milhões de americanos não tem um plano de saúde porque não tem dinheiro para pagar por ele. Na verdade, o plano de saúde é apenas uma maneira de se prevenir de despesas médicas inesperadas, por meio de um pagamento mensal para uma seguradora. Muitas pessoas, principalmente jovens saudáveis, acham melhor simplesmente se cuidar e, quando for eventualmente necessário, pagar diretamente as suas despesas médicas. A ausência de um seguro não significa que elas não tenham acesso a serviços de saúde, assim como não ter o seguro de um carro não significa que não seja possível pagar pelo seu conserto no caso de um acidente.
Mas sim, para milhões de pessoas, os planos de saúde (ou as despesas médicas diretas) são financeiramente proibitivos, além de pouco confiáveis. O sistema enfrenta muitos outros problemas. Consultas, exames e medicamentos têm preços exorbitantes. O gasto per capita com saúde é o maior do planeta. No ano de 2011, os países desenvolvidos despenderam, em média, 9% do PIB com saúde. Os estadunidenses, 18%. Considerando a enorme riqueza da nação, o mínimo que se poderia esperar é que tamanha discrepância de gastos resultasse na melhor saúde do mundo.
Infelizmente, isso não acontece. Os EUA podem se orgulhar de várias coisas de seu sistema: os melhores hospitais do planeta, líderes em criação e adopção de novas tecnologias, tratamentos e medicamentos, metade dos prêmios Nobel de medicina e um sistema relativamente veloz de atendimento. Mas isso não justifica a quantia exorbitante gasta por seus cidadãos em comparação ao resto do mundo, ainda mais quando levamos em conta que, em outros indicadores, os estadunidenses estão atrasados em relação às demais nações ricas: 34º em mortalidade infantil, 38º em expectativa de vida e, de acordo com um relatório da OMS do ano de 2000, 37º no desempenho mundial geral.
A culpa por todos esses problemas é invariavelmente atribuída ao livre-mercado. Seria esse país o perfeito exemplo de que a saúde privada é cara, não funciona, exclui os pobres e que, ao menos nesse setor, é necessária a intervenção governamental?
Primeiramente algumas definições. O que seria uma saúde integralmente privatizada? Ela teria que ter poucas regulamentações do governo, e, tão ou mais importante, poucos gastos também. Assim, se os EUA realmente tem um sistema privado, as despesas públicas na área de saúde teriam que ser no mínimo próximas de 0%. Porém, essa porcentagem é de 46%, em sua maioria concentradas nos programas Medicare and Medicaid (cujo funcionamento e efeitos serão explanados mais abaixo). Para efeito de comparação, o governo brasileiro, com o objetivo declarado de fornecer “gratuitamente” uma saúde pública e de qualidade, também gasta o correspondente a 46% das despesas de saúde no nosso país. Como é possível que o Brasil seja considerado um modelo misto público-privado e os EUA “um apocalipse privado”, se os governos de ambos exercem a mesma influência (em porcentagem de gastos) sobre o sistema de saúde?
Outra informação provavelmente desconhecida para aqueles que alardeiam que “por causa da falta de assistência do governo, quem não tem dinheiro simplesmente morre”: o governo americano tem uma despesa anual com saúde de aproximadamente 4 mil dólares por cidadão. Em termos absolutos, é o 4º maior gasto do planeta, maior do que muitos países idolatrados pelos socialdemocratas, como a Suécia (cujo gasto público per capita com saúde é 25% menor do que o dos Estados Unidos). Esse gasto enorme, por si só, já invalida a ideia de que a saúde dos EUA é sinônima de laissez-faire. Mas a questão vai muito além disso.
Nos EUA, para ser médico, é necessário conseguir licenças e enfrentar as burocracias e regulamentações de um cartel institucionalizado, a AMA (American Medical Association). O cartel basicamente atua como uma guilda, assim como os demais conselhos profissionais que artificialmente limitam a oferta de funcionários e obstruem a concorrência empregatícia. É o cartel que define quem pode e quem não pode ser médico, e obviamente que ele não está interessado em uma maior concorrência. Assim, a associação cria todo tipo de restrição que limita a quantidade de médicos, de escolas de medicina, de estudantes e a entrada de profissionais estrangeiros, além de perseguir e punir implacavelmente tratamentos alternativos e médicos não licenciados. As consequências de tal arranjo criado pelo governo (que delegou poderes para a AMA) são óbvias: menos oferta e menos concorrência.
Para se ter uma ideia, apenas seis anos após a criação do Council on Medical Education (um conselho da AMA responsável por vistoriar e permitir a existência das escolas de medicina), em 1904, foram fechadas 35 escolas, e nas restantes o número de estudantes foi reduzido em nada menos do que 50%. Até 2011, a quantia dessas instituições foi reduzida em mais 26%, ficando em operação apenas 123 escolas, não obstante a quadruplicação da população no período [16]. Menos oferta e menos concorrência significa, principalmente, serviços ruins ou artificialmente caros. Isso explica, por exemplo, porque todas as sete profissões mais bem pagas dos EUA são da área médica. Um bom exemplo de como a grande oferta de médicos garantia uma saúde barata e acessível para os pobres (até a AMA começar as primeiras restrições) pode ser visto aqui (link 2).
Semelhantes agências reguladoras, regras e burocracias existem em todas as outras áreas médicas, seja para quem quer ser um enfermeiro, farmacêutico, ou quem pretende abrir um hospital, uma farmácia, uma empresa de equipamentos médicos, uma seguradora de saúde, etc. Uma das intervenções que mais entravam a concorrência é a proibição das seguradoras de saúde de ofertarem serviços além da fronteira de seu estado. Para se ter uma ideia da tamanha distorção que isso cria, é como se a Unimed, criada em Santos, em 1967, jamais pudesse ter se expandido para fora de São Paulo.
Outro exemplo: a FDA (Food and Drug Administration) garante patentes e monopólios de produção e distribuição de vários remédios, encarecendo o preço dos mesmos e coibindo a concorrência tanto interna quanto externa. Isso permite o surgimento de figurões como Martin Shkreli. Muitos apontam a história do remédio cujo preço subiu em 5000% da noite para o dia como um exemplo de consequência da ganância capitalista. O que poucos sabem é que o mesmo remédio poderia ser importado do Canadá por menos de um dólar, se não fosse o fato de que o governo prende quem fizer isso.
Mas as patentes, as burocracias, os cartéis institucionalizados, a oferta artificialmente diminuída, as regulamentações e a quase que inexistência da concorrência, por si só, são insuficientes para explicar o alto custo da saúde americana. Praticamente todos os outros países do mundo também sofrem desses males, em maior ou menor grau. O que torna os Estados Unidos “exclusivos” é um fenômeno conhecido como socialização da demanda.
Atualmente, os seguros nos Estados Unidos cumprem um papel completamente distorcido em relação ao que deveria ser a função original de um seguro. Seguros devem ser utilizados para em casos emergenciais e acidentais. Ninguém recorre ao seguro de um carro para lavá-lo, ou ao seguro de habitação para trocar uma telha quebrada. Mas o que aconteceria se o governo passasse a obrigar os seguros a cobrirem todos os gastos relacionados não apenas a acidentes, incêndios e catástrofes, mas também à própria manutenção dos carros e das casas? O resultado mais imediato é que os preços das apólices subiriam drasticamente, devido ao aumento de custos para as seguradoras.
Mas outro efeito colateral é que haveria um crescimento exacerbado da demanda. Agora que os clientes não pagariam mais diretamente pelo abastecimento do carro ou pela troca de pneus, mas sim por meio do seguro, eles não se importariam com o quanto de gasolina consomem ou de escolher pneus com melhor relação custo benefício. E esse aumento da demanda aumentaria ainda mais os preços dos seguros, ou forçaria as seguradoras a deixarem de cobrir integralmente os custos de seus clientes.
É algo parecido com isso que ocorre no sistema de saúde dos EUA. As leis e as regulamentações determinam que os seguros devem cobrir não apenas doenças graves ou raios-X, mas todo tipo de coisa, como exames de sangue, consultas de rotina, medicamentos para dor de cabeça, etc. Esse é o fenômeno da socialização da demanda: as pessoas não pagam diretamente pelos seus gastos, mas sim por meio de um intermediário (a seguradora). Por parte dos consumidores, há poucos incentivos para a redução de gastos, dado que eles são divididos igualmente entre os clientes. Pelo contrário, a tendência é uma explosão na demanda, aumento de preços e recursos escassos da área de saúde sendo alocados de maneira ineficiente. Como destaca o economista Kel Kelly:
“Quando alguma coisa é de graça ou quase de graça, mais as pessoas a demandam. Com alguém pagando as suas contas, as pessoas fazem mais visitas ao doutor, não negociam para diminuir os preços crescentes com que se deparam e não se recusam a fazerem mais e mais testes supérfluos (…). Preços são usados para equilibrar oferta e demanda. Com a oferta de médicos restringida pela AMA, e o aumento da demanda dos consumidores por saúde relativamente grátis, os preços começam a subir rapidamente, e o tempo de espera para uma consulta se torna maior”
Outros fatores contribuem para intensificar ainda mais essa demanda coletiva. Em 1973, foi instituído o Health Maintenance Organization Act, que passou a obrigar quase todos os empregadores a oferecerem seguro-saúde para os seus empregados. Como já foi destacado anteriormente, ter um seguro não é necessariamente vantajoso, especialmente se a pessoa se cuida bem, não tem nenhuma doença e deduz que poderá pagar despesas médicas sem a necessidade de usar um plano de saúde como intermediário. Mas uma vez que o seguro se torna obrigatório e automaticamente descontado do salário, porque não tentar usufruir dele indiscriminadamente e o máximo possível? Assim, a demanda artificial cresce ainda mais.
Além disso, o governo tem dois sistemas de saúde principais, o Medicaid e o Medicare. O primeiro é destinado a transferir recursos para famílias e pessoas de baixa renda, e o segundo para idosos com mais de 65 anos. Em ambos os casos, a ideia é auxiliar quem teoricamente seria incapaz de pagar um seguro por conta própria, que são caros por causa da obrigatoriedade de serviços que devem oferecer, da oferta artificialmente escassa e da demanda inflada. É um claro exemplo de intervenção estatal para solucionar um problema gerado por outras intervenções estatais.
Juntos, os programas cobrem cerca de 100 milhões de pessoas, ou 1/3 da população do país. É um modelo semelhante ao do Canadá: um plano de saúde estatal, onde os beneficiários são atendidos em hospitais privados previamente contratados pelo governo.
O fenômeno de intensificação da demanda ocorre com ainda mais força. Os idosos e os pobres não se importam com a quantidade de despesas que geram, porque eles não pagam diretamente por elas (apenas por meio dos impostos). Os hospitais e médicos não se importam com os custos e a qualidade dos tratamentos, pois é o governo que paga para eles, não os consumidores. E os políticos, por sua vez, como estão lidando com um dinheiro que não é deles, também não se importam em aumentar os gastos, impostos e déficits. Esse desarranjo na alocação de recursos ajuda a explicar o altíssimo custo de cada beneficiário para os cofres públicos, não obstante a demora e a má qualidade dos atendimentos.
Outro problema adicional é provocado pela própria natureza de qualquer programa do governo: extensa burocracia e grandiosos regulamentos para os hospitais participantes. Esse custo burocrático é diluído nas despesas gerais dos hospitais, aumentando ainda mais os preços. No fim das contas, contrariamente ao que é amplamente divulgado no Brasil, as pessoas que não tem planos de saúde não são as mais pobres, mas sim aquelas que estão em uma renda intermediária: sem dinheiro para contratar algum seguro (o qual é caro por causa de todos os motivos já expostos), mas não tão pobres a ponto de receber ajuda estatal.
Outra consequência indesejada, mais nefasta e menos perceptível, é o total desestímulo à caridade privada e às filantropias. A caridade forçada do estado gera uma mudança de mentalidade nas pessoas. Para que ajudar os pobres, se o governo já está fazendo isso por nós? Para que dedicar uma hora semanal do meu trabalho de médico para oferecer tratamento gratuito em alguma instituição de caridade, se o estado pode me pagar para fazer a mesma coisa? Como destacou o político e médico Ron Paul:
“Nos dias anteriores ao Medicare e Medicaid, os pobres e os idosos eram internados nos hospitais na mesma proporção de hoje, e recebiam bom tratamento. Antes desses programas existirem, todo médico entendia que (…) tinha responsabilidade com os menos afortunados, e cuidados medicinas de graça eram a norma. Dificilmente alguém está informado disso hoje, uma vez que não se encaixa no típico roteiro da história de que o governo nos resgatou de um setor privado predatório.”
Lamentavelmente os Estados Unidos, que no passado já tiverem um bom sistema de saúde com livre-concorrência, médicos baratos e diversas entidades de caridade, hoje possuem a pior relação custo benefício do mundo. Por exemplo, em 1950, o país tinha a 11ª maior expectativa de vida do mundo, 27 posições acima da dos dias de hoje. No final daquela década tinha-se que trabalhar, em média, 15 dias por ano para pagar as despesas com saúde. Nos dias de hoje são 58, quase o quádruplo de tempo!
O grande problema da saúde é que os recursos são escassos, porém as demandas são praticamente infinitas. Simplesmente não há saúde, prevenção e tratamento “em excesso”. Economistas liberais acreditam que o livre-mercado e sistema de preços são ideais para garantir a eficácia na distribuição desses recursos. Os Estados Unidos tem uma demanda artificial, provocada por regras, decretos e programas do governo, e uma escassez artificial de oferta, por causa dos cartéis das profissões, das burocracias e das agências reguladoras. O resultado inevitável da falta de concorrência é a elevação dos preços e o aumento das despesas. É interessante comparar o sistema estadunidense com o de outros países desenvolvidos, mas ele certamente está longe, mas muito longe de representar o modelo liberal.