*Por Eduardo Marques
França do século XVIII, ápice da Revolução Industrial, margens do rio Sena: trabalhadores se reúnem na “Place de Grève” para se opor às condições degradantes a que eram submetidos. Jornadas de trabalho dezoito horas por dia, salários ínfimos, condições perigosas de labor e trabalho infantil eram exemplos das mazelas rotineiras neste histórico período de transição da Humanidade. A tensão “trabalho versus capital” chegara ao seu limite e provocara o surgimento do instrumento de pressão máximo a ser recorrido pela parte hipossuficiente – a parte fraca – da relação trabalhista: nascia o direito de greve.
Além de um fenômeno social, a greve, como direito trabalhista, tem a seguinte premissa básica: não há prestação de serviços por parte do trabalhador, e, em contrapartida, não há o pagamento de salários por parte do empregador. O objetivo é chegar a uma melhoria justa nas condições de trabalho, firmada de comum acordo entre representantes dos dois polos da relação e, na maioria dos casos, oficializada através de um instrumento de negociação coletiva de trabalho, de caráter contratual.
Com o tempo, essa sofrida conquista da classe operária da Revolução Industrial foi expandida a uma classe de trabalhadores que, à época e até hoje, goza de condições de trabalho e garantias completamente diferentes: os funcionários públicos. No âmbito público, os sujeitos da greve são outros: não há o trabalhador de carteira assinada, submetido às regras da Consolidação das Leis do Trabalho; há o funcionário público estatutário, cujo vínculo funcional se estabelece por lei, e não contrato de trabalho – por isso também não há direito à negociação coletiva de trabalho. Seguindo este raciocínio, também não há o empregador – há o Estado, cujas atribuições e deveres vão muito além daqueles inerentes a um mero empregador. O “corte de ponto” ocorre de acordo com interesses políticos. Acima de tudo, por razões óbvias, não existe a tensão “trabalho versus capital”. Logo: um mesmo direito, mas sujeitos e objeto completamente diferentes. Em razão disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal em aplicar a lei de greve da iniciativa privada ao setor público “no que couber” parece tão incabível.
Há um terceiro sujeito na relação que se forma em uma greve do funcionalismo público, mas seu papel é ignorado em todo o processo: o cidadão. Trata-se do sujeito que viabiliza o cenário uma greve no setor público ao sustentar financeiramente o próprio Estado. O cidadão não tem direito de “entrar em greve” não pagando seus impostos ao ver suas necessidades mais básicas desatendidas. Em razão de tamanhas incompatibilidades teóricas e práticas, não é surpresa alguma que o exercício do direito de greve dos funcionários públicos fora, ao longo de sua existência ao redor do globo, ora amplamente liberado, ora particularizado, ora proibido e ora, até mesmo, criminalizado. Como se pode ver, a greve não é – ou ao menos não deveria ser – algo banal. Muito menos nos serviços públicos, onde imperam princípios jurídicos constitucionais como a eficiência e a continuidade.
No Brasil, até hoje o direito de greve do funcionalismo público não foi regulamentado especificamente. Em 2012 o país foi palco das maiores paralisações de servidores públicos em sua história. Aproveitando-se da falta de lei, os sindicatos de servidores públicos lideraram policiais civis e militares, profissionais do setor tributário, professores e burocratas de todas as esferas da federação contra seu “empregador” em uma interminável queda de braço – ironicamente, cruzando os braços.
Pesquisa publicada pela revista Valor Econômico em 2012 revelou que salários do funcionalismo público são, em média, 75% mais altos que os da iniciativa privada – realidade que provoca, inclusive, a migração da mão de obra qualificada do setor produtivo ao serviço público. Parcela significativa dos grevistas é, portanto, composta por verdadeiros “marajás do serviço público”, que cansaram de ter que ir apenas uma vez a Europa por ano. E não há nada de errado nisso! O indivíduo deve ter a liberdade de buscar sua felicidade da forma que achar melhor, com responsabilidade e sendo merecedor de recompensas por seus esforços e o valor de seu trabalho. Não é esse sistema que se instaurou no funcionalismo público. Podemos mencionar dois fatores que comprovam isso: a inexistência de meritocracia e a preponderância do favoritismo clientelista nos quadros do funcionalismo. Até mesmo servidores bem intencionados não vislumbram outra forma de angariar melhorias na sua condição financeira de outra forma que não o movimento paredista; outro fator é a irresponsabilidade dos sindicatos, que se aproveitam da ausência de lei e dos interesses políticos para, não raramente, deflagrarem movimentos abusivos, ilegais e, até mesmo, inconstitucionais. Tanta ganância, cinismo e incoerência se juntam à passividade do Estado diante da situação e nos fazem viver um verdadeiro “Estado Sindical”.
A lógica – ou, no caso, ilógica – deste ciclo vicioso é, em síntese, a seguinte: os funcionários já recebem salários muito acima da média e exigem aumentos também acima da média; seu empregador, o Estado, só poderia conceder tal melhoria com o que é arrecadado através de impostos; o cidadão paga os impostos; as greves do funcionalismo público prejudicam diretamente o cidadão, que produzindo menos, pagará menos impostos, tornando ainda menos viável a melhoria salarial ou de condições de trabalho pleiteadas. A título de exemplo, as greves da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – e da Receita Federal, por si só, trouxeram prejuízos de 12 milhões de reais diários às empresas ligadas ao comércio exterior. Vale destacar que o Estado arrecada milhões de reais em impostos do que é lucrado por estas empresas.
O ano de 2014 não iniciou de outra maneira. Ao contrário do que o atual governo postula, não é o Estado que vem se mostrando onipresente, mas sim, as paralisações nos vários segmentos dos serviços assumidos. São consequências práticas da condição de absoluta ineficiência estatal que se consolidou quase que institucionalmente. Por outro lado, apesar das inúmeras desvantagens trabalhistas, há, na iniciativa privada, uma prestação de serviços conhecidamente mais enxuta e eficiente, e que raramente avança ao extremo de uma greve. Além de permanecer inerte quanto à regulamentação, o Estado tornou-se refém das próprias garantias legais concedidas ao funcionalismo. Contudo, passa à posição de cúmplice nos jogos de interesses políticos envolvendo as mais diversas classes de funcionários, os quais também, independentemente da legitimidade de seus pleitos, estão longe de arcar com a pior parte da insustentável situação que se estabeleceu. Ao pagar seus impostos e não poder contar com a prestação de serviços essenciais ao normal andamento de sua vida, quem segue no polo hipossuficiente da relação grevista é o cidadão. Como se não bastasse, esse “terceiro sujeito” acumula, curiosamente, os papéis antagônicos de principal financiador e maior prejudicado dos danos decorrentes da atual letargia grevista do funcionalismo público no Brasil.
* Eduardo Marques – advogado, especialista em Direito do Estado e funcionário público.
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Alessandro Souza
A respeito do texto acima, estas são as minhas considerações:
A Constituição de 1988 garantiu o direito de greve aos servidores públicos civis. Estamos em 2014 e ele ainda não foi regulamentado. Decorridas mais de duas décadas e após inúmeras provocações jurídicas e políticas por parte das entidades representativas dos servidores, inclusive com alguns mandados de injunção interpostos, o Poder Público tem se valido de sua prerrogativa no que tange à iniciativa legislativa regulamentar para protelar o máximo possível a materialização deste direito social constitucional dos trabalhadores. Além disso, em 2004, a EC nº 45 transferia para a Justiça do Trabalho a competência para o processamento e julgamento de todas as demandas decorrentes das relações de trabalho, inclusive dos servidores públicos estatutários. Esta era uma demanda antiga dos servidores públicos e sua lógica era simples: o Brasil possui uma justiça especializada em ações trabalhistas, desta forma, por que os conflitos inerentes às relações de trabalho do funcionalismo deveriam ser resolvidos pela justiça comum? A alegria durou pouco. Num dos maiores exemplos de corporativismo da nossa história, a AJUFE (Associação dos Juízes Federais) impetrou e obteve êxito com a ADIN 492, mantendo tudo como era antes. Ou seja, magistrados conquistaram, em juízo, o direito de continuarem julgando seus próprios direitos com o prejuízo dos interesses da grande maioria dos demais servidores… A própria controvérsia jurídica a respeito do “corte de ponto”, consequência natural a que os funcionários grevistas estariam submetidos em razão de suas ações paredistas, poderia ter sido resolvido há muito tempo se o Poder Público já tivesse regulado suficientemente a matéria.
A ausência da persecução do lucro nas atividades típicas do estado ou, como prefere o autor, da tensão “trabalho versus capital” não atenua em nada a natureza laboral alienante, conflituosa e desgastante no setor público. A finalidade do trabalho não está restrita à extração da mais-valia e a ausência deste pressuposto corresponde apenas a uma peculiaridade do serviço público e de outros segmentos profissionais. Segundo o texto da Lei 7.783/89, greve é a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador. Observa-se que a lei não faz qualquer ressalva quanto ao caráter economicista da relação de trabalho em questão. A paralisação do trabalho tem como único objetivo exercer pressão, visando à defesa ou conquista de interesses coletivos ou objetivos sociais mais amplos. Sendo assim, não se pode ignorar a possibilidade de que um prejuízo temporário na prestação dos serviços à sociedade em decorrência de um movimento grevista venha a ser compensado posteriormente pelo aumento da qualidade destes mesmos serviços no caso de as reivindicações trabalhistas virem a ser atendidas.
Quando o autor aponta a suposta banalização do direito de greve pelos servidores públicos é preciso que se esclareçam alguns pontos intrínsecos a esta afirmação. Em primeiro lugar, seria necessária uma analise mais profunda sobre cada uma das greves ocorridas no serviço público nos últimos anos a fim de verificar se é possível ou não o embasamento fático de tal conclusão. Em segundo, o termo servidor público reflete tamanha amplitude a ponto de inviabilizar qualquer generalização acerca do conceito. Estamos falando de trabalhadores de esferas governamentais distintas (união, estados e municípios); naturezas variadas (agentes políticos, carreiras típicas de estado, carreiras ordinárias, técnicos etc); e realidades remuneratórias muito diferentes (o piso do serviço público é o salário mínimo nacional – R$724,00 – e o teto, muitas vezes ignorado, o subsídio dos ministros do supremo – R$29.400,00). Assim, para que sejam tratadas adequadamente as múltiplas abordagens que comporta este tema tão complexo, devem ser afastadas quaisquer reminiscências do senso comum e as simplificações vulgares capazes de comprometer o resultado de uma análise socialmente útil. Além disso, sob o ponto de vista dos trabalhadores e da sociedade, poderiam ser consideradas “banais”, por exemplo, a forma com que os serviços públicos essenciais como educação, saúde e segurança são mal remunerados e administrados pelo estado. Também podemos dizer que os poderes públicos “banalizam” a nossa Lei Maior sempre que ignoram o princípio da periodicidade, descumprindo o preceito constitucional que garante ao funcionalismo público, no mínimo, uma revisão geral anual de suas remunerações. Isso significa que muitas greves no serviço público são deflagradas “apenas” porque a nossa Constituição Federal é desprezada por aqueles que deveriam zelar pelo seu cumprimento.
Após rápida consulta em sites de busca, não foi possível encontrar a “pesquisa publicada pela revista Valor Econômico em 2012 revelou que salários do funcionalismo público são, em média, 75% mais altos que os da iniciativa privada”. Tivemos acesso apenas à seguinte matéria publicada no mesmo jornal e no mesmo ano “Funcionalismo tem salário 40% maior que média nacional, segundo IBGE”, link: file:///C:/Users/User/Desktop/Funcionalismo%20tem%20sal%C3%A1rio%2040%25%20maior%20que%20m%C3%A9dia%20nacional,%20segundo%20IBGE%20%20%20Valor%20Econ%C3%B4mico.htm. Mais uma vez, é preciso que se tenha muito cuidado na construção de determinadas teses devido ao risco de fundamentá-las em premissas equivocadas ou superficiais. Grande parte das funções que são desempenhadas pelos cargos públicos não possui correspondência na iniciativa privada. Além disso, é necessário que se revele os paradigmas que foram utilizados para efeito de tal comparação. As remunerações pagas pelo serviço público, como acontece em quase todos os segmentos profissionais no Brasil, são muito desiguais, o que dificultaria muito a realização de uma pesquisa deste tipo. Considerando uma ponderação média dos salários (o que faz o IBGE), temos um resultando obviamente distorcido devido às distâncias referenciais. Assim, seria preciso conhecer e discutir de forma bastante ampla os métodos e as amostragens utilizados na pesquisa dos “75%”.
Sobre as manifestações meramente ideológicas por parte do autor que opina e especula com a mesma intensidade e disposição no texto em comento, não é preciso dizer muito. Ao condenar o exercício de um direito constitucional garantido aos trabalhadores que é obstaculizado pela morosidade do Poder Público em regulamentá-lo dando fiel cumprimento à Lei Maior, o autor deixa muito claro os interesses que pretende defender. Um povo que não compreende e nem tolera manifestações políticas e uma classe de trabalhadores que não luta pela sua própria dignidade não podem ser identificadas como estruturas de defesa e aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito. A superação do atraso secular e da desigualdade crônica que impedem a construção de uma sociedade mais justa e próspera no Brasil é absolutamente dependente da manifestação organizada de seus cidadãos em todos os espaços possíveis. Posicionamentos contrários a realização plena de direitos podem até existir e ser defendidos livremente, mas jamais devem prevalecer numa sociedade que se pretenda saudável e democrática.