Por Paulo Víctor Garcia Borges

Podemos ignorar a realidade, mas não podemos ignorar as consequências de ignorar a realidade. A não ser, claro, que um de nós seja um político ou burocrata. 

A realidade pode ser definida como tudo aquilo que circunda o indivíduo. Entretanto, nossas percepções da realidade podem ser distorcidas ou manipuladas. Quando isso ocorre, nossa capacidade de observar a realidade fica comprometida e, portanto, os objetos terão pouca ou nenhuma influência sobre nossos pensamentos, como observou Kant.

Em excerto do livro “A Natureza da Psique”, Carl G. Jung dedicou-se a explicar, nos termos da psicologia, o que é a realidade e como podemos estabelecer um contato verdadeiro com ela:

(…) Todos os conteúdos de nosso inconsciente são constantemente projetados em nosso meio ambiente, e só na medida em que reconhecemos certas peculiaridades de nossos objetos como projeções, como imagines [imagens], é que conseguimos diferenciá-los dos atributos reais desses objetos. Mas se não estamos conscientes do caráter projetivo da qualidade do objeto, não temos outra saída senão acreditar, piamente, que esta qualidade pertence realmente ao objeto. (…)

Este preconceito está inteiramente de acordo com a ausência geral de espírito crítico que não vê diferença entre o objeto em si e a ideia que se tem dele.[1]

Não obstante, existem outras maneiras de lidarmos com a realidade sem recorrer exclusivamente à psicoterapia analítica. Embora bastante preciso, o conceito de projeção não está assentado em uma base evidente. Para compreendê-lo, precisamos aceitar certos fundamentos teóricos que lhe são subjacentes. E, sendo um modelo teórico, sua comprovação depende da experiência humana.

Sendo assim, um modo seguro de compreendermos a realidade é entender os conceitos da ciência da ação humana – a praxeologia. Aqui, “ação” não tem o mesmo significado que para a psicologia.

A psicologia é o campo do conhecimento que, resumidamente, elabora teorias que explicam “por que” as pessoas escolhem determinados fins ou “como” elas agirão em determinadas situações. Por sua vez, a praxeologia lida com as consequências lógicas do fato de que as pessoas têm objetivos e agem para atingi-los.[2]

O método da praxeologia, assim como o da lógica é apriorístico, ou seja, não se faz necessária a experiência para ser verdadeira, e sua base está fundamentada na proposição “os humanos agem”, a qual é um axioma. Um axioma é uma premissa necessariamente evidente e verdadeira, que serve de fundamento para uma demonstração. Podemos compará-la ao princípio aristotélico da não-contradição de que “nada pode ser e não ser simultaneamente”.

Compreendidos esses pressupostos, vamos ao próximo ponto.


Recursos, escassez e troca

A ação humana é, de acordo com Mises, “o esforço proposital para se atingir fins desejados. É o esforço intencional de um ser racional para atingir um grau maior de satisfação, de seu ponto de vista subjetivo”.[3]

Dependemos do uso de recursos para agirmos. Recursos são escassos e seus efeitos são limitados. Em função dessa escassez, nos vemos obrigados a agir. 

Ação e escassez explicam o porquê de não alcançarmos todos os fins simultaneamente, pois a ação sempre envolve uma escolha. Quando agimos, buscamos satisfazer sempre – e na medida do possível –  uma necessidade mais desejada naquele instante.[4] 

Através da ação, demonstramos qual é o fim mais urgente a ser atingido naquele momento. Mostramos a preferência pelo fim buscado sobre outros fins que foram rejeitados – e que passaram a ser impossibilitados de serem alcançados naquele instante. Desse modo, “se agimos para alcançar um fim a, não podemos empregar os mesmos meios da ação de a para alcançar um fim excludente b”.[5]

Se agir é escolher empregar meios para realizar fins, a troca, enquanto ação livre, obedecerá aos mesmos princípios. A troca de um bem econômico (dinheiro, mercadoria ou serviço) é feita em razão de um resultado futuro, decorrente dessa ação. Escolhemos a situação posterior em face da anterior.[6]

Por isso, constatamos que o mercado, que é constituído de diversas trocas voluntariamente feitas – mantidas inalteradas as demais circunstâncias – não é um jogo de soma zero. Ninguém troca – nem busca trocar – um bem por outro equivalente, mas sim por um mais intensamente desejado, isto é, com maior preferência em uma escala de ordem.

Essa “busca humana” é uma ferramenta da razão humana. Através da percepção e preferência pelos benefícios da cooperação e da divisão de trabalho, ela possibilita que uma comunidade humana amplie constantemente a satisfação de seus membros, livrando-os de seus desconfortos.


Estabelecendo o valor

A economia clássica não foi capaz de estabelecer um modelo teórico apropriado para o valor. Dentre os modelos teóricos apresentados, o de maior destaque foi o do valor-trabalho.[7]

Sobre essa teoria, Adam Smith foi responsável por um dos mais conhecidos questionamentos: o “paradoxo da água e do diamante”. Smith questionou o baixo valor da água em relação à sua necessidade fundamental para a humanidade em diversos aspectos. Contrastou com o diamante, material menos “útil”, mas que possuía um valor altíssimo.[8]

A resposta dada por ele é a conhecida “oferta e demanda”. Apesar da resposta estar correta, não é através da verificação concreta que a lei de oferta e demanda possui sustentação. Para essa questão, Carl Menger desenvolveu uma explicação satisfatória.

Um bem econômico é um meio para alcançar um fim. Porém, não há um fim predeterminado sobre os bens, que os transformem objetivamente em meios. Não estão constituídos nos átomos dos recursos os seus valores ou utilidades.[9]

É o indivíduo que age quem atribui uma finalidade ao recurso, transformando-o em um bem econômico, dando-o a função de um meio. O indivíduo valoriza-o ao atribuí-lo um uso, seja ele um bem tangível ou intangível.[10]

Estas três percepções – valor, meio e fim – não são atribuições dadas por um parâmetro mensurável, fixo e imutável, dado na natureza (ou conspirado pela classe dominante). São, em verdade, atribuições subjetivas que partem do agente.

A existência da mutabilidade no valor atribuído, na medida em que agimos ou mudamos nossas percepções incessantemente, comprova que valores objetivos e determinados não existem. Sendo assim, não podemos mensurar um valor atribuído, pois ele não é composto objetivamente por números cardinais. 

Os termos quantitativos (por exemplo, os preços), definidos pelos cálculos econômicos, surgem em sistemas complexos que utilizam uma moeda – são convenções cuja finalidade é facilitar a dinâmica de trocas.

Assim como as ações demonstram escolhas, os valores demonstram o grau de intensidade pelo qual o bem satisfaz uma necessidade mais ou menos urgente de um agente.[11]


Preferência temporal 

A existência de todo e qualquer ser humano é finita. Todos os seres humanos se sujeitam à passagem do tempo.

Nós agimos para atingir um patamar de satisfação maior, caso contrário, não agiríamos. Nós buscamos satisfazer a necessidade mais urgentemente visada, caso contrário, agiríamos de forma diferente. Então, a ação leva em consideração o tempo para chegar ao fim desejado.

Porque não temos todo o tempo ao nosso dispor, para nós o tempo é um recurso escasso. Preferimos que os bens sejam obtidos o mais rapidamente possível, ao invés de recebê-los depois. E, do mesmo modo, escolhemos os bens que durarão por mais tempo ou, de outras formas, nos darão uma maior satisfação. Essa constatação recebe o nome de preferência temporal.

Sem que houvesse a expectativa de obter uma recompensa maior, o homem não abriria mão de consumir um determinado recurso mais urgentemente necessário.[12]

Sendo preferência temporal a representação da escolha, ou não, pela poupança, em relação ao consumo, percebemos que os julgamentos de valor entre os indivíduos são diferentes e, do mesmo modo, a atribuição do valor subjetivo de cada um não é constante.[13]

Em suma, os indivíduos pouparão ou consumirão, mais ou menos recursos, em diferentes períodos de suas vidas, e de formas diferentes entre si.

A partir desses conceitos fundamentais, podemos passar a analisar as nuances da problemática oriunda do COVID-19.


A sobrevivência da civilização depende do desligamento da divisão internacional do trabalho?

Não vivemos exatamente uma crise a nível mundial. Na verdade, o que está ocorrendo é o desligamento forçado de quase toda atividade econômica do setor privado. Políticos e burocratas, motivados por manifestações de múltiplas fontes, impuseram o fechamento de todos os empreendimentos, permitindo que somente os serviços considerados “essenciais” mantivessem suas operações. Como resultado, os mercados dos países estão praticamente isolados.[14]

Somos confrontados com inúmeras informações que difundem a ideia falaciosa de que só existe um curso de ação possível: devemos permanecer completamente isolados para nos protegermos; caso contrário, morreremos.

Essas afirmações catastróficas servem para manipular as escolhas da população através do pânico generalizado. Sendo assim, os momentos de crise são solo fértil para percepções distorcidas da realidade.

Com base nessas suposições fatalistas, os governos tentam justificar boa parte de suas ações. Presumindo que sejam boas as intenções dos políticos, ainda assim eles ignoram o fenômeno social básico de que depende nossa civilização – a divisão do trabalho, complementada pela cooperação humana.[15]

A experiência ensina ao homem que a ação em cooperação é mais eficiente e mais produtiva do que a ação isolada de indivíduos autossuficientes. As condições naturais determinantes da vida e do esforço humano fazem com que a divisão do trabalho aumente o resultado material por unidade de trabalho despendido.[16]

A manutenção do bem-estar geral requer a proteção da divisão do trabalho, responsável pelo desenvolvimento contínuo da civilização.

Concebemos assim o incentivo que induziu as pessoas a não se considerarem simplesmente adversárias na luta pela apropriação dos limitados meios de subsistência fornecidos pela natureza. Constatamos o que as impeliu, e permanentemente as impele, a se juntarem para colaborar. Cada passo na direção de um mais elaborado sistema de divisão do trabalho favorece os interesses de todos os que dele participam.[17]

Sendo assim, o desenvolvimento econômico e social é um processo que se reforça mutuamente: o desenvolvimento do mercado permite uma divisão mais ampla do trabalho; e isso, por sua vez, possibilita uma maior ampliação do mercado.[18]

Impedindo o funcionamento dos empreendimentos e interferindo no sistema de preços, eles promovem uma verdadeira destruição do padrão de vida: com os empreendedores proibidos de produzir, as empresas perderão toda ou grande parte de suas receitas; consequentemente, demissões ocorrerão. Além disso, a queda abrupta na produção de bens resultará no aumento generalizado de preços.

Para resolver esses problemas que eles próprios geraram, os governos e os defensores do isolamento social total, criarão ainda mais problemas: programas assistenciais e políticas de expansão de crédito, que resultarão em déficits orçamentários cada vez maiores. As políticas de gastos e déficits são políticas que operam do lado da demanda; o que suas decisões atacam é o lado da oferta – e choques de oferta devem ser resolvidos com políticas que facilitem a oferta.[19]

A solução dos governos de recorrer à expansão de crédito, eufemismo para criação de dinheiro, por meio de seus bancos centrais é muito perigosa. A inflação não tem como criar e produzir os bens de capital necessários para qualquer projeto. Não cura condições insatisfatórias.[20]

Por que os políticos agem de modo que, daqui a um ano, poderá nos custar a manutenção do poder de compra, dos empregos e/ou do crescimento econômico? A resposta, além de simples, é autoevidente: os políticos, em regra, decidem tendo em vista o que lhes favorece, principalmente quando esses resultados podem ser obtidos no curto prazo, como a chance de reeleição ou de aumentar sua popularidade e aprovação. Pouco importa que os efeitos a longo prazo sejam devastadores para a economia, a saúde ou a educação.[21]

Não devemos negar a gravidade do Covid-19. A pandemia existe e precisamos buscar meios sustentáveis de proteger a vida das pessoas. Os efeitos do vírus não são iguais para todas as pessoas e sabemos que existem grupos com diferentes níveis de risco, o qual é influenciado pela idade e pelas condições de saúde pré-existentes. De acordo com o Imperial College London, a taxa de mortalidade média está entre 0,5 e 1%.[22][23][24]

Precisamos encarar o fato de que cada país possui um perfil demográfico distinto. Necessário em determinados países, o lockdown poderá ser evitado em outros. A instigação ao pânico moral não é a melhor estratégia para o enfrentamento do vírus. Com o cenário propício, nossa disposição para aceitar soluções absurdas aumenta consideravelmente. A cura não pode ser pior que a doença.[25][26]


[1] JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Disponível em: <http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/05/jung-c-a-natureza-da-psique.pdf>. Acesso em 04 de abril de 2020.

[2] MURPHY, Robert. Psicologia versus Praxeologia. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=231>. Acesso em: 05 de abril de 2020.

[3] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[4] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[5] GARCIA, Paulo. Três pilares da economia austríaca. Disponível em: <http://voxbrasilis.com/tres-pilares-da-economia-austriaca/>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[6] GARCIA, Paulo. Três pilares da economia austríaca. Disponível em: <http://voxbrasilis.com/tres-pilares-da-economia-austriaca/>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[7] HORWITZ, Steve. A teoria do valor-trabalho ainda assombra a humanidade e segue causando estragos. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2540>. Acesso em: 02 de abril de 2020.

[8] SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural. 2ª edição. 1985.

[9] MENGER, Carl. Princípios da Economia Política. Disponível em: <http://portalconservador.com/livros/Carl-Menger-Principios-de-Economia-Politica.pdf>. Acesso em: 04 de abril de 2020.

[10] GARCIA, Paulo. Hoppe e a Base Econômica de Mises. Disponível em: <http://voxbrasilis.com/hoppe-e-a-base-economica-de-mises/>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[11] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[12] HOPPE, Hans-Hermann. A Ciência Econômica e o Método Austríaco. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil. 2010.

[13] ROQUE, Leandro. Juros, preferência temporal e ciclos econômicos. 2009. Disponível em: <https://www.mises.org.br/SearchByAuthor.aspx?id=79&type=articles>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[14] ROCKWELL, Lew. O fim da civilização?. Disponível em: <https://www.mises.org.br/article/3232/o-fim-da-civilizacao>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[15] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[16] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[17] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[18] ROTHBARD, Murray. Liberdade, desigualdade, primitivismo e divisão do trabalho. Disponível em: <https://mises.org/library/freedom-inequality-primitivism-and-division-labor>. Acesso em: 05 de abril de 2020.

[19] ROCKWELL, Lew. O fim da civilização?. Disponível em: <https://www.mises.org.br/article/3232/o-fim-da-civilizacao>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[20] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Disponível em: <http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/acao-humana.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2020.

[21] HOPPE, Hans-Hermann. Democracia: o Deus que falhou. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/arquivos/deus-que-falhou.pdf>. Acesso em: 04 de abril de 2020.

[22] BBC. Coronavirus death rate: What are the chances of dying?. Robert Cuffe. Publicado em: 24 de março de 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/health-51674743>. Acesso em: 05 de abril de 2020.

[23] WHO. World Health Organization. WHO Covid-19 dashboard. Disponível em: <https://who.sprinklr.com/>. Acesso em: 07 de abril de 2020. 

[24] BBC. Coronavirus pandemic: Tracking the global outbreak. The Visual and Data Journalism Team. Publicado em: 07 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-51235105>. Acesso em: 07 de abril de 2020.

[25] BBC. Coronavirus: A visual guide to the economic impact. Lora Jones, David Brown, Daniele Palumbo. Publicado em: 03 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/business-51706225>. Acesso em: 05 de abril de 2020.

[26] MACHADO, Carla. Pânico Moral: Para uma Revisão do Conceito. Interações: Sociedade e as novas modernidades. Disponível em: <https://interacoes-ismt.com/index.php/revista/article/view/125>. Acesso em: 07 de abril de 2020.

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